A transparência só é completa quando envolve a franqueza, que consiste em expor tanto os dados positivos como os negativos do desempenho da empresa.
Por Lélio Lauretti*
Não há dúvida de que a grande contribuição oferecida pela governança corporativa à administração de empresas foi a adição dos princípios éticos aos princípios técnicos desenvolvidos pela chamada “administração científica”, cujos primeiros passos remontam à Revolução Industrial e cuja maturidade se alcançou no estágio inicial do século XX, com o impressionante trabalho desenvolvido por Taylor, Fayol, Ford, Sloan, Morgan e outros. Deu-se, desta forma, uma nova dimensão à arte de gerenciar as empresas – as grandes, em particular –, valorizando a função “controle”, estabelecendo claros divisores entre os papéis de sócios e de administradores e criando a figura do “stakeholder”, que, mais do que uma “parte interessada”, deve ser visto como um investidor indireto, pois clientes, empregados, fornecedores, credores, comunidades e até governos – e não apenas os sócios – também assumem riscos expressivos em seu relacionamento com determinada empresa.
Hoje, ao considerar o stakeholder como um investidor indireto, temos grandemente facilitada a sempre espinhosa tarefa de administrar conflitos de interesses, pela anteposição, a estes, da ideia de “parceria” embutida no conceito de stakeholder. Lembrar que essa palavra, para a qual não temos uma tradução perfeita, deriva de stake, que em inglês tem o sentido de aposta e de risco também.
Voltando aos princípios éticos, verificamos que sua adoção é consequência natural e necessária das enormes transformações experimentadas pela sociedade na segunda metade do século passado – período no qual surgiram as maiores conquistas tecnológicas da História, muito especialmente no tocante à comunicação e à ideia de universalidade que começou a se impor no questionamento de conceitos arraigados, como o de “criar valor para os sócios” como objetivo maior de qualquer atividade empresarial. Hoje o pensamento substitutivo é “criar valor para a sociedade, a começar pelos sócios”.
Nesse contexto, a pressão da opinião pública ganhou muita força a ponto de, nos países mais desenvolvidos, influenciar governos e empresas no desenho das respectivas estratégias. Uma dessas pressões, que se torna cada vez mais atuante com o passar do tempo, é a demanda por transparência, tanto no âmbito familiar como no escolar, no empresarial ou no governamental. Não é por outra razão que o Instituto Ethos reserva à transparência um espaço nobre em sua “Carta de Princípios” para as empresas associadas. Da leitura cotidiana de nossos noticiários, somos induzidos a acreditar que a corrupção, por exemplo, campeia livremente e aumenta a cada dia. Estamos enganados se pensamos assim, porque o que de fato tem aumentado ininterruptamente é a transparência e, por meio dela, o conhecimento público das práticas de corrupção. Não foi por outra razão que nasceu a Lei da Ficha Limpa no Brasil. A confortante realidade é que a corrupção está em declínio acentuado, na razão inversa à do crescimento acelerado da transparência.
Como princípio ético, a transparência – mais do que obrigação – é o desejo de informar tudo aquilo que, no plano empresarial (por exemplo), possa afetar significativamente os interesses dos stakeholders, os quais, mais bem informados, terão melhores condições de analisar os riscos que estão assumindo.
A transparência só é completa quando envolve a franqueza, consistindo esta em expor, em paralelo, na comunicação institucional, tanto os dados positivos como os negativos do desempenho, tais como problemas identificados e pendentes de solução, metas estratégicas não alcançadas e variações negativas em alguns indicadores operacionais ou financeiros. Quedas de produção, vendas e margens de lucro são exemplos bem comuns das variações negativas e, até alguns anos atrás, raramente seriam citadas nos informes distribuídos pelas empresas envolvidas.
É importante frisar que a franqueza legitima e enriquece a transparência. Quando lemos um relatório anual e só encontramos fatos positivos, dificilmente vamos escapar da dúvida: estão escondendo o “outro lado” da história ou (muito pior!) será que ignoram os problemas existentes, alguns dos quais já são até objeto de suspeitas no mercado? A empresa moderna tem à sua disposição um incomparável instrumental de comunicação, que começa pelos profissionais especializados, como o de relações com investidores (RI); podem manter sites bem estruturados, de fácil navegação, sempre atualizados; dispõem do Relatório Anual ou, se preferirem, do Relatório de Sustentabilidade para direcionar aos endereços corretos seus informes sobre o exercício findo, em retrospectiva completada pela análise das tendências e perspectivas com relação a todos os aspectos da atividade empresarial – legal, administrativo, operacional e econômico-financeiro.
Seria um erro tentar a padronização desses relatórios, porque eles devem refletir a cultura própria de cada entidade titular. É mais do que evidente que o relatório anual de uma igreja ou de um clube esportivo tem que diferir – e muito! – do relatório de um banco, de um supermercado ou de uma montadora de veículos. O relatório deve “ter a cara” da entidade titular. Da experiência de autores e de leitores de relatórios se originaram algumas recomendações práticas:
a) o relatório anual é o veículo mais completo de comunicação em qualquer tipo de entidade, porque abrange um exercício completo e todas as atividades básicas desenvolvidas;
b) deve ir além do que a lei e os regulamentos imponham e incluir qualquer dado que, embora não obrigatório, possa afetar os interesses do leitor;
c) a concisão é, com certeza, a maior aliada do relatório anual, já que as pessoas, hoje, dispõem de pouco tempo para leitura e, em princípio, reagem com má-vontade a informes muito extensos (há empresas que produzem relatórios com mais de 300 páginas!);
d) a alocação de espaços no relatório deve levar em conta a relevância dos temas expostos (não precisamos importar o termo “materialidade”, que, no Brasil, faz parte do Código Penal);
e) ilustrações (gráficos e/ou fotografias) não devem ser utilizadas apenas com finalidade decorativa; sua função é tornar a leitura mais fácil e mais agradável, bem como valorizar o texto;
f) cuidado com os informes “cor-de-rosa” ou autoelogiosos: correm o sério risco de ser recebidos com elevada dose de desconfiança, como já se comentou linhas acima.
* Lélio Lauretti é sócio-fundador e professor do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).
Este texto faz parte de uma série de artigos de especialistas promovida pela área de Gestão Sustentável do Instituto Ethos, cujo objetivo é subsidiar e estimular as boas práticas de gestão.
Veja também:
– A promoção da igualdade racial pelas empresas, de Reinaldo Bulgarelli;
– Relacionamento com partes interessadas, de Regi Magalhães;
– Usar o poder dos negócios para resolver problemas socioambientais, de Ricardo Abramovay;
– As empresas e o combate à corrupção, por Henrique Lian; e
– Incorporação dos princípios da responsabilidade social, por Vivian Smith.