Antropólogo Pedro Jaime analisa que a ausência de ações afirmativas do poder público e de medidas corporativas contribuem para a pouca presença de negros nas grandes empresas do país

De acordo com a classificação do IBGE, 52,9% da população brasileira é composta por pretos e pardos. No entanto, os negros ocupam apenas 4,7% dos postos de direção e 6,3% dos cargos de gerência das 500 maiores empresas que operam no Brasil, segundo uma pesquisa lançada em 2016 pelo Instituto Ethos e pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). Em se tratando das mulheres, a discrepância é ainda mais gritante: as negras estão presentes em apenas 0,4% dos cargos de direção e 1,6% dos postos de gerência, segundo os dados da mesma pesquisa.

A despeito de transformações positivas nas últimas décadas, a pouca participação de homens e mulheres negros em cargos de liderança no mundo corporativo é mais uma forma de perpetuar as desigualdades sociais no país. Essa é a opinião do antropólogo Pedro Jaime, que estudou o tema em seu doutorado publicado em 2016 pela Edusp no livro “Executivos negros: racismo e diversidade no mundo empresarial”. Nesta entrevista para o Nexo, Jaime comenta os resultados de sua pesquisa, mostrando como o mundo empresarial dialoga com o racismo estrutural que ainda caracteriza a sociedade brasileira. Segundo o antropólogo, a “defasagem brasileira em termos de políticas públicas de combate aos efeitos persistentes do racismo explica o fato de ainda não termos feito progressos significativos no combate às desigualdades raciais no mundo empresarial”.

Nexo: O que você descobriu na sua pesquisa sobre a presença de negros nas empresas no Brasil? Em quais cargos essa presença é mais expressiva e onde ela é menos frequente?
PEDRO JAIME: Descobri que a construção das trajetórias profissionais de executivos negros passou por transformações importantes no Brasil entre o final dos anos 1970 e o início do século 21. Descobri também que, apesar de essas mudanças apontarem para um cenário mais favorável neste novo século, a desigualdade que marca a presença de brancos e negros no mundo corporativo brasileiro é ainda chocante. Cabe ressaltar que chamo de mundo corporativo aquele composto por corporações transnacionais e grandes empresas nacionais privadas. E quanto à categoria “executivos”, me refiro a profissionais que ocupam, ou estão sendo treinados para ocupar, posições de gerência ou de direção nessas organizações. Sendo assim, a investigação não enfocou o setor público, nem as pequenas e médias empresas, nem tampouco os empresários negros, aqueles que são proprietários do seu próprio negócio. Delimitei o estudo na cidade de São Paulo. Consequentemente é necessário cuidado para não generalizar apressadamente os achados para o conjunto da sociedade brasileira. Falo isso basicamente por duas razões. A primeira é que o mundo corporativo possui uma dinâmica própria em São Paulo, pela sua característica de ser a “capital” econômica brasileira. Aqui estão localizadas as sedes no país de muitas das multinacionais que atuam no Brasil, bem como as matrizes de boa parte das grandes empresas brasileiras. Sendo assim, as tensões e os acordos que se estabelecem entre tais companhias e suas entidades representativas, o Estado, os sindicatos, os movimentos sociais e outros atores sociais ganham nesta cidade contornos específicos. A segunda razão é que num país tão grande e diverso como o Brasil, as relações raciais não possuem os mesmos sentidos em todas as localidades. Elas não se conjugam em São Paulo da mesma forma que em Salvador. Ser negro, ou ser branco não é a mesma coisa em Manaus e em Caxias do Sul. Claro que existem semelhanças na forma como a questão racial se estrutura em todo o país. Mas há também diferenças que não podem ser desprezadas. Tendo circunscrito a pesquisa às empresas que compõem o mundo corporativo em São Paulo, percebi que a presença de negros é maior nos cargos operacionais dessas empresas, sofrendo uma redução gritante nos postos de maior poder, prestígio e remuneração, como são aqueles de gerência e direção. Isto na verdade é algo que já havia sido revelado por um levantamento que vem sendo realizado desde 2003 pelo Instituto Ethos, com a cooperação do BID, denominado “Perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas”, cuja última edição foi divulgada em 2016. Sendo a minha pesquisa socioantropológica, empreendida por meio da etnografia e do método biográfico, procurei mostrar as vidas que estão por trás das estatísticas e os quadros sociopolíticos que as emolduram.

Nexo: Como você explica essa desigualdade?
PEDRO JAIME: Essa disparidade na presença de brancos e negros no mundo corporativo em nosso país reflete a existência do racismo na sociedade brasileira. É importante destacar que nos debates contemporâneos sobre a questão racial, no Brasil como em outros países do mundo, os cientistas sociais procuram enfatizar não apenas as manifestações do racismo no cotidiano, ou seja, a presença do preconceito e da discriminação racial nas relações interpessoais. Eles e elas enfatizam sobretudo a continuidade e as possibilidades de alteração da estrutura das desigualdades raciais. Assim, no que se refere ao Brasil por exemplo, as ciências sociais têm se debruçado sobre as seguintes indagações: a) Como é possível explicar o fato de um país que não possui uma política racista de Estado – tal como ocorreu nos Estados Unidos, com o sistema de segregação racial, ou na África do Sul, com o apartheid – possuir indicadores tão alarmantes de desigualdade racial em várias áreas da vida social, da habitação ao emprego, passando pela saúde e pela educação? b) O que é possível fazer para reverter esse quadro de desigualdades raciais? Devo destacar que essa afirmativa de que o Brasil não possui uma política racista de Estado é controversa, uma vez que a nossa história é marcada pela escravidão e a nossa política de migração implementada no final do século 19 teve um recorte racial, embasada que foi pelo racismo científico vigente na época e pelo desejo de embranquecer a população. Seja como for, e tomando como referência o mundo corporativo, os indicadores de desigualdade racial no Brasil são aberrantes quando olhados à luz da realidade norte-americana. Uma breve comparação deixa isso evidente. Vejamos: 52,9% da população brasileira é formada por negros (pretos e pardos, segundo a classificação do IBGE). Porém, os negros representam apenas 4,7% dos indivíduos que ocupam postos de direção e 6,3% daqueles que estão nos cargos de gerência das 500 maiores empresas que operam no Brasil, segundo a edição de 2016 da pesquisa do Instituto Ethos/BID mencionada anteriormente. Já nos Estados Unidos, os negros representam 12,6% da população e correspondem a 9,4% dos executivos em cargos de direção nas 100 maiores companhias do país, de acordo com o The Executive Leadership Council. Logo, para termos uma representação de negros no mundo empresarial brasileiro mais próxima daquela encontrada nos EUA, que já é desigual, deveríamos contar com 39,5% de afrodescendentes nos postos de direção das empresas, um percentual oito vezes superior aos atuais 4,7%. Conclui-se então que, a julgar pelos dados do mundo corporativo, a desigualdade racial existente na nação que durante muito tempo se imaginou como uma democracia racial, paraíso da convivência entre as “raças”, é maior do que a presente no país que representaria o exemplo mais acabado da existência do racismo. Verdade desconcertante!

Nexo: No caso das mulheres negras, ela é mais acentuada? Qual a sua interpretação para esse cenário?
PEDRO JAIME: Sim, no caso das mulheres negras essa desigualdade é mais acentuada. Se os negros de ambos os sexos totalizam 4,7% dos profissionais que ocupam postos de direção e 6,3% daqueles que estão nos cargos de gerência das 500 maiores empresas que operam no Brasil, as mulheres negras estão presentes em 1,6% dos postos de gerência e em 0,4% dos cargos de direção, ainda segundo a edição de 2016 da pesquisa Ethos/BID. Isso quer dizer que existem apenas duas mulheres negras (pretas ou pardas) entre os 548 diretores, brancos e não brancos e de ambos os sexos, que atuam nessas companhias. As questões racial e de gênero, além da classe social, pontuaram as trajetórias sociais e os percursos profissionais das executivas negras com quem conversei na minha pesquisa, se fazendo presentes, de forma ora mais explícita, ora mais sutil, nas suas famílias de origem, nas instituições educacionais por onde passaram, nas empresas em que trabalharam, nas famílias que compuseram. Os relatos dessas profissionais que apresento em um dos capítulos do livro possuem por vezes contornos dramáticos e revelam o ponto a que podem chegar o racismo e o sexismo na sociedade brasileira.

Nexo: As empresas brasileiras têm adotado práticas para mudar esse quadro? Quais as suas motivações?
PEDRO JAIME: Sim, as empresas têm adotado práticas para alterar esse quadro de desigualdades raciais. Elas encontraram na “diversity management”, uma metodologia administrativa que faz parte do arquivo de tecnologias gerenciais que circula nos fluxos globais que caracterizam a cultura transnacional de negócios, uma forma de responder às pressões da agenda sociopolítica contemporânea no que se refere à redução das desigualdades raciais e à promoção da equidade de gênero. É inegável que os programas de diversidade que têm sido implementados pelo mundo corporativo em nosso país fazem parte de um cenário mais favorável encontrado pelos jovens negros e negras que ingressaram no mundo empresarial no início do século 21 e que aspiram carreiras executivas. Diferentemente do que aconteceu com os executivos negros que iniciaram suas trajetórias profissionais no final dos anos 1970, esses jovens contam com um aparato de apoio mais positivo para o enfrentamento do racismo no desenho de suas carreiras. Isso, conforme discuto no livro, se deve a vários fatores que não se restringem às práticas de gestão de pessoas das companhias; indo desde as alterações no ideário do movimento negro à adoção de políticas de ação afirmativa pelo Estado brasileiro em resposta às pressões desse mesmo movimento. O contexto histórico-social mais favorável facilita o trabalho de produção de si mesmos como sujeitos por parte desses jovens, que constroem então identidades negras mais positivamente afirmadas que os indivíduos da geração anterior. Contudo, olhando os dados de uma perspectiva mais ampla, é forçoso reconhecer que é ainda bastante limitada a atuação das empresas para reverter o quadro de desigualdades raciais existente no mundo corporativo em nosso país. Afirmo isso porque, segundo a mesma pesquisa Ethos/BID apenas 3,4% das 500 maiores empresas que operam no nosso país disseram possuir políticas com metas e ações planejadas para incentivar e ampliar a participação de negros em cargos de direção ou gerência. O que é mais impressionante é que cerca de 85% dessas companhias reconheceram não ter medidas para este fim. Isso revela inconsistência no discurso da responsabilidade social empresarial.

Nexo: O que você acha que precisaria ser feito para reduzir essas disparidades no universo empresarial?
PEDRO JAIME: Concluo o livro com um elogio às políticas públicas de combate às desigualdades raciais. Se os Estados Unidos possuem indicadores bem melhores do que os brasileiros no que se refere à presença de negros no mundo corporativo, conforme apontei anteriormente, isso se deve ao fato de o Estado nesse país ter implementado ações afirmativas para a inclusão dos negros no mercado de trabalho desde o final dos anos 1960, no quadro das lutas pelos direitos civis que culminaram com o fim do sistema de segregação racial. Tal fato produziu respostas empresariais com consequências concretas na construção das trajetórias de carreira por profissionais negros. Reivindicações semelhantes compuseram a agenda dos diferentes movimentos negros no Brasil pós abolição. Porém, só foram amplamente discutidas nos debates públicos e posteriormente implementadas em nosso país no final do século 20 e início do século 21, ou seja, mais de 100 anos após o fim do sistema colonial escravista. A meu ver, essa defasagem brasileira em termos de políticas públicas de combate aos efeitos persistentes do racismo explica o fato de ainda não termos feito progressos significativos no combate às desigualdades raciais no mundo empresarial. Penso que uma nova geração de executivos negros só poderá ser formada por um contingente expressivo de profissionais se sua construção contar com políticas públicas efetivas para a promoção da inclusão racial. E infelizmente o cenário que se descortina não é muito animador. As conquistas recentes, embora não suficientes, quanto à integração do negro na sociedade de classes brasileira, para lembrar o clássico livro de Florestan Fernandes, parecem comprometidas nesse momento em que vivemos sérios abalos à nossa frágil democracia. Não se pode ser otimista quando os órgãos responsáveis pela promoção da igualdade racial são desmontados tanto no plano nacional quanto no plano local, caso da Seppir [Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial], no âmbito do governo federal; e da SMPIR [Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial], no quadro da prefeitura de São Paulo. Ao serem descontinuados e incorporados por agências que atuam também em outras frentes, perdem inevitavelmente orçamento e equipe para a realização dos trabalhos. Mas a história está sempre por ser escrita e então é preciso seguir investigando a questão racial no mundo empresarial para ver como as coisas vão se passar.

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Foto: Eric Thayer – Reuters