Artigo aborda quais foram os reais impactos da Lei de Cotas para pessoas com deficiência nesses 22 anos de aplicação

Por João Ribas*

O art. 93 da Lei nº 8.213, determina que as empresas privadas brasileiras com cem ou mais empregados estão obrigadas a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com pessoas com deficiência física, auditiva, visual ou intelectual. Nascida em 1991, neste ano de 2013, a Lei completará 22 anos de sanção.

Qual tem sido a contribuição desta norma para o crescimento do grau de empregabilidade das pessoas com deficiência no país? É importante explicar bem essa pergunta.

Não estamos perguntando se a Lei nº 8.213/91 realmente fez com que as empresas contratassem mais pessoas com deficiência em comparação às pouquíssimas admissões de antes de 1991. Dados recentes do Ministério do Trabalho e Emprego mostram que atualmente existem cerca de 306 mil pessoas com deficiência formalmente empregadas no Brasil. Desse total, aproximadamente 223 mil foram contratadas porque essa Lei de Cotas passou a existir.

O que estamos perguntando é se essa lei fez com que as pessoas com deficiência tenham adquirido mais e maiores possibilidades de ser empregadas. Se constatarmos que as contratações aumentaram nos últimos anos tão somente porque as empresas se viram obrigadas a cumprir uma lei, então talvez tenhamos de reconhecer que a competência profissional para o desempenho que a tarefa exige não foi o principal critério das contratações. E, se isso for verdade, possivelmente descobriremos que a grande maioria das pessoas com deficiência que nos últimos anos foram empregadas não se desenvolveu profissionalmente a ponto de se tornar competitiva no mercado de trabalho, ou seja, não adquiriu maior grau de empregabilidade.

 

Garantia de emprego
A Lei de Cotas tem o espírito de dar oportunidade de trabalho e emprego a uma parcela da população brasileira que, em tese, teve historicamente essa oportunidade negada. Essa é a parcela de pessoas que têm alguma deficiência física, auditiva, visual ou intelectual que, por desconhecimento, insegurança, medo ou preconceito, teria sistematicamente sido preterida nos processos de recrutamento e seleção das empresas formais. Incrustada na Lei de Cotas haveria, portanto, uma vocação politicamente correta de redimir uma injustiça social coletiva.

A partir de 1999, com a edição do Decreto nº 3.298, agentes da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério Público do Trabalho chamaram para si a incumbência moral de reparar essa falta de equidade de direitos. Iniciaram um processo formal de notificações às empresas para que informassem oficialmente se estavam cumprindo a Lei de Cotas e, com isso, a iniciativa privada realmente passou a contratar tantas pessoas com deficiência quantas jamais imaginaria fazê-lo. Termos de Ajustamento de Conduta foram assinados em profusão. Autuações foram lavradas em abundância. Hoje o Mercado de Trabalho já não mais desconsidera a presença das pessoas com deficiência entre aqueles que querem disputar uma vaga de emprego.

Mas há um paradoxo nesse processo. Se, por um lado, a Lei de Cotas beneficiou o grupo, por outro lado, não garantiu o emprego do indivíduo. Isso porque o parágrafo 1º do art. 93 da Lei nº 8.213/91 (repetido ipsis litteris no Decreto nº 3.298/99), afirma que “a dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de noventa dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante”. Concretamente, se uma pessoa com deficiência não apresenta o resultado profissional esperado pela empresa, ela pode ser substituída por outra pessoa com deficiência e, desse modo, não se estará descumprindo a lei. Esse parágrafo, portanto, permite que qualquer pessoa com deficiência seja demitida, o que não garante a permanência no emprego de qualquer indivíduo que tenha uma deficiência física, auditiva, visual ou intelectual. E, não tenhamos dúvidas, as demissões acontecem com relativa frequência.

 

Políticas públicas e privadas de preparação profissional
Ao longo dos seus 22 anos de existência, a Lei de Cotas foi um instrumento jurídico pelo qual se procurou assegurar trabalho e emprego ao grupo social constituído de pessoas com deficiência. O treinamento, a qualificação profissional, o desenvolvimento de competências para o desempenho de tarefas necessárias ao dia-a-dia do negócio empresarial, não foram objeto de atenção de quem criou a Lei nem dos que fiscalizavam o seu cumprimento.

Deste modo, durante muito tempo as políticas públicas e privadas, muitas vezes tão importantes para a formação profissional das pessoas com deficiência, estiveram desconectadas do mercado de trabalho. Algumas ações pontuais de educação profissional foram iniciadas nas Escolas Técnicas, Agrotécnicas e nos Centro federal de educação tecnológica (CEFET), do Ministério da Educação, e nas Escolas Profissionais, do Sistema S (SENAC, SENAI etc.). Mas nunca houve o desenvolvimento efetivo de uma ampla política nacional voltada à educação regular e profissional que visasse à conexão entre a preparação profissional e as expectativas das empresas contratantes. A Lei de Cotas não se preocupou com esse assunto.

Somente em agosto de 2012 o Ministério do Trabalho e Emprego lançou a Instrução Normativa nº 98, que orienta o Auditor Fiscal do Trabalho sobre como proceder quando fiscalizar o cumprimento da Lei de Cotas, e que afirma ser seu dever ”incentivar as empresas e outras instituições para que promovam a participação das pessoas com deficiência nos programas de aprendizagem profissional […]” (art. 15, caput). Estabelece, ademais, que “as instituições públicas e privadas que ministram educação profissional devem disponibilizar cursos profissionais de nível básico para as pessoas com deficiência” (art. 15, inciso I). Foram quase 21 anos após a primeira edição da Lei de Cotas para que a preparação profissional das pessoas com deficiência fosse objeto específico atenção.

 

Atitude profissional das pessoas com deficiência
Alguns podem acreditar que a Lei de Cotas é suficiente para que as pessoas com deficiência tenham trabalho e emprego garantido. Afinal, lei existe para ser cumprida e os agentes da fiscalização existem para fazer com que a Lei seja cumprida. Outros podem crer que cabe sobretudo às empresas o emprego e o desenvolvimento profissional das pessoas com deficiência. Afinal, elas são as empregadoras. Sim, a Lei e as empresas têm um papel importante. Mas as pessoas com deficiência devem mostrar que têm identidade profissional quando querem ingressar no mercado de trabalho.

Para que sejam profissionais de fato, é preciso que tenham as quatro atribuições atualmente mais desejadas pelas empresas quando recrutam e selecionam: potencial, competência, atitude e postura. Nesse contexto, não são diferentes dos outros. Todas as pessoas com deficiência que realmente se tornaram profissionais, atualmente recebem salário de mercado e foram promovidas, são aquelas que chamaram para si o protagonismo do seu próprio desenvolvimento.

As pessoas com deficiência que alcançaram postos mais destacados de liderança em grandes empresas são aquelas que demonstraram muito mais os seus alcances do que os seus limites. O mundo corporativo requer, em todos os níveis do trabalho, profissionais competentes, que entreguem com eficácia as tarefas solicitadas, que atinjam metas e, portanto, alcancem resultados. Invocar limites pode reforçar eventuais preconceitos que impedem de serem vistos como profissionais nos quais as empresas podem e devem investir.

Ultrapassar limites, procurar novas possibilidades, buscar o próprio desenvolvimento profissional, procurar novos desafios, ter o máximo de independência e autonomia possíveis, manter autoestima elevada, ter proatividade, querer que o trabalho realizado alcance resultados. Essas são as atitudes que provam que estamos incluídos no real mundo do trabalho e tornam as empresas confiantes para nos contratar.

 

João Ribas é Antropólogo. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Head de Diversidade & Inclusão da Serasa Experian, responsável pelo Programa de Empregabilidade de Pessoas com Deficiência. É também cadeirante.

 

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