Na pesquisa de Giorgio Agamben, filósofo italiano, sobre o Estado de Exceção, este é caracterizado como a forma legal daquilo que não pode ser legal, mas que transforma os atos do soberano em força de lei. Para ele, a exceção não condiciona uma situação extraordinária que apenas restabelece a ordem numa situação emergencial. Pelo contrário, entende como uma forma de governar que se transformou, aos poucos, em paradigma para as democracias modernas. Com isso, em sua investigação, Agamben demonstra que os Estados modernos usam cada vez mais a exceção jurídica para governar. O filósofo não deixa de destacar que, em tese, o uso provisório dos plenos poderes é compatível com as constituições democráticas, como é da ciência dos juristas e dos políticos, mas que seu uso contínuo enfraquece e liquida as democracias.
Agamben também destaca uma guinada do conceito de exceção durante o século XX, que do direito de necessidade, passou a ter como base também emergências militares, emergências econômicas e o terrorismo. Como exemplo, Agamben cita o New Deal, acionado pela delegação de plenos poderes ao presidente, no caso Franklin Roosevelt, na forma do National Recovery Act, de 16 de junho de 1933. A justificativa era enfrentar a grande depressão.
Nesse sentido, é possível fazer uma leitura, como sugerem diferentes intérpretes, das Medidas Provisórias (MPs), que são artifícios excepcionais que podem ser editados pelo presidente da República, sob situação ou justificativa de relevância ou urgência, mas que se tornaram mecanismos corriqueiros da pratica do Executivo. Nesse sentido, o Poder Executivo absorve o caráter legislativo e o Poder Legislativo torna-se uma chancelaria ou ratificadoria de disposições promulgadas pelo Executivo.
No Brasil, o Poder Executivo se utiliza, cada vez com mais frequência, de centenas de MPs. A Constituição de 1937 concedia ao presidente os poderes de emitir os decretos-leis que, com a constituição de 1988, passaram a ser caracterizados como Medidas Provisórias, também atípicas, para apreciação do Congresso em 60 dias, prorrogáveis por mais 60. As reedições das MPs surgiram em 1989. Alguns juristas comparam as MPs a “cheques em branco” para o presidente legislar sobre qualquer tema. A MP, não sendo lei, tem, porém, força de lei.
Quem poderia exercer controle sobre as MPs? Os mecanismos de freios e contrapesos parecem cada vez mais distantes da prática, tanto do Congresso como do Judiciário, mas também podem ser exercidos pelos meios de comunicação e a sociedade em geral. Fernando Henrique Cardoso, que em 1998 reconhecia que ou o Congresso punha um ponto no desrespeito a si próprio e à Constituição, ou reconhecia que no Brasil só havia um poder de verdade, o do presidente, mostrando-se ferrenho crítico do autoritarismo e do desequilíbrio dos poderes – na situação, o embate estava em torno do Plano Collor e o combate à inflação -, quando presidente, em seu mandato pelo PSDB, lançou mão de 406 medidas provisórias, inclusive reedições.
As MPs também foram paradigmas da forma de governar de José Sarney (MDB) com 119 MPs, Fernando Collor (PTC), com 95, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com 419, Dilma Rousseff (PT), com 204, Michel Temer (MDB) com 142 e Jair Bolsonaro, com 62 até 30 de marco de 2020. Todos os governos inovaram quanto ao uso abusivo das MPs. Dilma, por exemplo, usou deste artifício para mudar leis essenciais como a Lei 12.651 de 25 de maio de 2012, também conhecida como Novo Código Florestal ou mesmo a Lei 8. 666 de 21 de junho de 1993, a Lei de Licitações, e para se antecipar ao Congresso, com seus debates com a sociedade civil.
Vê-se que não é a pandemia que coloca o Estado Democrático de Direito à prova. Mas, durante a pandemia muitas fantasias distópicas parecem: driblar as resistências ou aprofundar a comoção que adormece a prática da crítica e reflexividade. O filosofo sul-coreano, Byung-Chul Han, utiliza uma metáfora interessantíssima sobre isso, que ilustra que talvez “o vírus não seja mais do que a gota que transbordou do copo”.
Nesse momento de tantos golpes, de isolamento e de enfraquecimento dos sentimentos coletivos, a MP 910 não deixa de ter sido usada de forma estratégica. A MP legaliza e favorece a grilagem no país inteiro, sobretudo na Amazônia, quando não faz muito tempo que uma outra MP, em 2017, também desencadeou um processo de regularização de invasões de terras públicas ocorridas até 2011. Desde então, o que se confirma no Brasil, por escolhas políticas, é que o crime ambiental compensa, afinal invasores e grileiros são beneficiados com a privatização de terras públicas.
A MP 910, portanto, tem um legado e vem na baia do reforço histórico desse mecanismo, que mina o debate público e a participação da sociedade na construção de entendimentos e melhoramentos, o que mina a democracia. A normalização das MPs revela a presença do autoritarismo no ordenamento jurídico.
Hoje, precisamos desmascarar, inviabilizar e nos opor a MP 910, em vigor desde dezembro, por sua ameaça aos biomas, à biodiversidade, aos povos originários, aos benefícios das florestas em pé e por sua normalização da violência, do desmatamento, do genocídio e do racismo ambiental sob o subterfúgio da regularização fundiária. Mas, não podemos nos dispensar da posição e do debate crítico da normalização dos mecanismos de exceção.
Agamben, em sua pesquisa, nos mostra que no Ocidente o sistema jurídico tem uma estrutura dupla: potestas – o elemento normativo e jurídico; e, o auctoritas – o elemento metajurídico. Ambos são antagônicos, estão ligados, apesar de distintos e mostram que a morada do direito é frágil. Quando potestas e auctoritas tendem a coincidir numa pessoa, num poder, quando se ligam no estado de exceção e se tornam a regra, conclui o filósofo: “o sistema jurídico-político se transforma em uma máquina letal”.
O uso corriqueiro das MPs na administração, além de atender a interesses espúrios, é letal. Mas, é possível desmontar a maquinaria no ordenamento jurídico, embora constitua um ponto de grande tensão na democracia.
Por: Edson Lopes, gerente-executivo de Eventos do Instituto Ethos
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