Neste artigo, o educador Reinaldo Bulgarelli enfoca os desafios atuais e as possibilidades para práticas socialmente responsáveis relacionadas ao tema.

Por Reinaldo Bulgarelli*

O movimento de responsabilidade social empresarial no Brasil já nasceu com uma agenda envolvendo a questão racial. O Instituto Ethos, desde a sua criação, trouxe para a sociedade brasileira a reflexão sobre a importância de as empresas abordarem o racismo, com foco na questão do negro. Mais do que isso, apresentou uma proposta de abordagem prática do tema por meio dos Indicadores Ethos, apoiados por um conjunto de publicações que orientam as empresas.1

Com essa atuação, o Instituto Ethos aproximou das empresas os ativistas na causa antirracismo e vice-versa, estimulando novos projetos e atividades das mais variadas no campo das ações promotoras de igualdade racial.

Algumas lições, em meio a desafios e possibilidades, podem ser colhidas neste momento, sobretudo após uma década, no mínimo, de envolvimento das empresas com a temática racial.

1. O Estado brasileiro está mais adiantado do que as empresas ao pensar o tema do racismo, ao assumir que o país é racista e ao propor legislações inclusivas, que promovem direitos e reparam os históricos e persistentes prejuízos aos negros.

2. É evidente que, diante desse atraso, as empresas terão de realizar mais esforços em prol da igualdade racial. Os dados da demografia interna das empresas, como o exemplificado no Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas 2, demonstram uma distância inaceitável entre negros e não negros.

3. A tendência é que o Estado tome medidas para acelerar os resultados no campo da inclusão do negro no mercado de trabalho, o que pode envolver o estabelecimento de cotas, dada a gravidade da situação. Assim, mesmo que a atuação mais efetiva das empresas seja importante, o tempo que já foi perdido com indiferença, negação da realidade, rejeição a ações afirmativas e ações tímidas e ineficazes faz com que a correção do Estado seja urgente. Uma parcela significativa da sociedade está exigindo ações por parte do Estado, e este, não apenas o Governo Federal, vem demonstrando apoio e iniciativas na direção das ações afirmativas, incluindo as cotas.

4. As empresas, dessa forma, precisam se capacitar urgentemente para compreender melhor a situação e agir sobre essa realidade, assimilando a possível legislação de cotas de maneira a adicionar valor a todos, incluindo os resultados nos negócios. Devem agradecer o apoio, caso a medida das cotas se concretize, diante da sua incapacidade para lidar com o tema por conta própria. O mesmo vem acontecendo com a legislação de cotas para inclusão de pessoas com deficiência e de jovens (legislação da aprendizagem). Algumas empresas já assimilaram as medidas, aprendendo com elas e tornando-as fonte de aprimoramento no relacionamento com cerca de 46 milhões de brasileiros, segundo dados do Censo do IBGE de 2010. No caso da população negra, estamos falando de 51,3%, o que representa mais de 100 milhões de pessoas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) publicada pelo IBGE em 2012.

5. A realidade do país quanto ao acesso do negro à universidade melhorou muito nos últimos anos, o que contribui para que os dados atuais de acesso a emprego e carreira no mercado de trabalho sejam inaceitáveis. A educação é um fator determinante para o sucesso no mundo do trabalho. Segundo o IBGE, na Síntese dos Indicadores Sociais 2012, o acesso ao nível superior “cresceu de 27,0% para 51,3%, entre 2001–2011, sendo que, entre os estudantes negros ou pardos nessa faixa etária3, a proporção cresceu de 10,2% para 35,8%”.4 Com um número três vezes maior de negros em relação a 2001, é intolerável que os dados do mercado de trabalho não revelem o aproveitamento dessa oferta de trabalhadores qualificados, demonstrando que há outros fatores interferindo nas escolhas das empresas. Portanto, a educação sozinha, sem ações afirmativas por parte do mercado de trabalho, não tem sido capaz de promover para os negros a mesma ascensão e benefícios dos que não são negros.

6. No âmbito das empresas, as ações afirmativas precisam adquirir maior amplitude e efetividade. São tímidas em relação à promoção da igualdade racial e, diante de tamanho desafio, precisam ser avaliadas para que se identifiquem problemas e se ganhe maior efetividade. É preciso ampliar os espaços de reflexão sobre o tema no próprio movimento de responsabilidade social empresarial. Dentro das empresas, é preciso maior envolvimento da alta liderança, com programas mais robustos em termos de beneficiados, estratégias e recursos.

7. É preciso enfrentar conceitos que persistem e que não têm ajudado as empresas a sair da situação atual. Existe a ideia de que no Brasil não há racismo, que “o problema é social e não racial”, entre outras abordagens que apenas reforçam a certeza sobre a presença exuberante do racismo, criando impactos negativos na gestão empresarial.

8. Para garantir melhores resultados, é preciso ampliar significativamente o número de ações afirmativas nas empresas, sobretudo nas maiores. Elas têm uma influência na cadeia de valor que permeia todo o mercado de trabalho, mas é importante frisar que também precisam aprender com as pequenas e médias empresas, cujos dados sobre inclusão do negro seguem outros padrões de comportamento.

9. As empresas devem explicitar que as ações afirmativas se devem aos impactos negativos causados pelo racismo na sociedade e visam corrigir os problemas, reaproximar a organização do segmento negro e reparar o prejuízo que têm com a ausência deste, uma vez que operam seus negócios numa sociedade em que a maioria da população se autodeclara negra. São argumentos racionais, dentro da lógica empresarial, que também compreendem a linguagem dos valores e da necessária sintonia com a identidade organizacional, além do compromisso para com o desenvolvimento sustentável. Impactos negativos na reputação têm custado caro a muitas empresas, que podem não aparecer no Índice Dow Jones de Sustentabilidade (DJSI), no Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) BM&F Bovespa ou no Guia Você S/A-Exame das Melhores Empresas para Você Trabalhar, por exemplo.

10. É preciso evitar discursos que, usando como justificativa as deficiências de formação da população negra, apenas fortalecem o racismo. Também a empresa tem “deficiências de formação” quando não sabe identificar qualidades naquilo que é diferente dos brancos e quando se afasta de mais de 50% da população, gerando alto impacto negativo na constituição de suas equipes, no acesso a talentos, nos negócios com a nova classe média e em outros espaços com maior presença da população negra. As ações afirmativas existem para corrigir um problema na sociedade e na organização e para acelerar resultados na promoção da equidade, retirando barreiras que impedem a empresa de acessar seus talentos por causa do racismo, e não apenas da falta de qualificação profissional dos negros. Todos os brancos, majoritariamente presentes nas empresas e nos cargos de liderança, são tão mais qualificados que os negros ou há maior tolerância com a qualidade de sua formação educacional e profissional?

11. Nossas empresas são brancas (no número de trabalhadores e líderes), branqueadas (nos rituais) e branquejantes (na pressão para que todos sejam brancos), com estruturas, sistemas e processos que refletem o nível de influência do racismo nas práticas de gestão. Logo, é importante haver uma revisão, a fim de que a composição das equipes, a comunicação com seus diferentes públicos, os produtos, serviços e demais práticas que interessam à sobrevivência da empresa no mercado sejam tão brancos quanto não brancos.

12. Ações afirmativas que não se apresentam como meio de enfrentamento do racismo e que evitam essa palavra, postura e práticas antirracistas são equivocadas. Um dos fatores que podem contribuir para os tímidos resultados observados no mercado de trabalho é que há empresas que se recusam a falar do racismo e a enfrentá-lo. Entendem que basta oferecer oportunidades por meio de alguns programas para resolver o problema. Essas ações precisam ser acompanhadas de um entendimento da questão das relações raciais no país, da questão do racismo, de suas formas de expressão no ambiente de trabalho, da relação com diferentes públicos.

13. É preciso conhecer melhor a legislação do país e as possibilidades de gestão da questão racial por parte das empresas, perguntando aos candidatos à vaga sobre seu pertencimento étnico-racial, por exemplo. A autodeclaração é uma ferramenta para essa gestão, apesar de seus limites, mas ainda há empresas que rejeitam o cumprimento da legislação, como a que trata do Relatório Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego. É de interesse legítimo da sociedade que as empresas gerenciem as informações sobre sua demografia interna em relação a raça ou cor.

14. É preciso aprimorar os programas de ação afirmativa, porque, além de tímidos, podem estar cometendo equívocos, como a criação de grupos de estagiários negros. Além de tímidos em número, os programas dessa natureza em geral funcionam de maneira paralela às práticas de gestão, não geram aprendizados para a organização e revelam baixa efetividade no aproveitamento dos estagiários em seus quadros, entre outros problemas. Uma saída, a partir do princípio da promoção da igualdade racial com ações afirmativas para acelerar resultados efetivos e aprendizados para todos, seria garantir um percentual para estagiários negros no programa de estágio da empresa. Se há defasagem em relação às exigências da empresa, o que nem sempre se confirma, ela poderia ser resolvida no próprio programa de estágio, e não nesses programas paralelos. Além disso, a falta de entendimento da questão racial tem levado algumas empresas a ter estagiários não negros até mesmo nesses programas ditos de ação afirmativa para negros, o que é preocupante. Teme-se que algumas pessoas da liderança dessas empresas usem tais programas equivocados para justificar que agiram e mesmo assim não obtiveram resultados, e que, portanto, o problema é do negro e de sua formação educacional. O problema jamais será da empresa e do racismo vigente, muito menos de seus profissionais “bem-intencionados” e seus métodos “altamente eficazes”.

15. Não há valorização da diversidade sem a realização de ações afirmativas. Também não é possível realizar ações afirmativas sem explicitar o posicionamento contra o racismo e sem agir sobre ele para além da oferta de oportunidades. Aspectos culturais e medidas concretas no âmbito da gestão, dos processos internos e do relacionamento com os diferentes públicos, ou stakeholders, precisam ser combinados para que as empresas ganhem maior efetividade e ajustem o passo com as demandas da sociedade civil e do Estado brasileiro.

As grandes empresas souberam enfrentar desafios gigantes em vários campos para se tornarem amplas e atuantes até o momento. Portanto, elas saberão enfrentar o desafio da promoção da igualdade racial. É uma exigência, mais do que uma esperança.

* Reinaldo Bulgarelli é sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação.

Este texto faz parte de uma série de artigos de especialistas promovida pela área de Gestão Sustentável, do Instituto Ethos, cujo objetivo é subsidiar e estimular as boas práticas de gestão.

Veja também:
– Relacionamento com partes interessadas, de Regi Magalhães; e
Usar o poder dos negócios para resolver problemas socioambientais, por Ricardo Abramovay.

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Notas

1 As publicações mais diretamente relacionadas à questão racial são Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas e O Compromisso das Empresas com a Promoção da Igualdade Racial. Indiretamente, o tema é também abordado nas publicações Diversidade e Equidade – Metodologia para Censos nas Empresas, Como as Empresas Podem e Devem Valorizar a Diversidade e Empresas e Direitos Humanos na Perspectiva do Trabalho Decente. Além disso, dentre os eventos realizados pelo Instituto Ethos, um deles foi comentado no artigo As Ações Afirmativas das Empresas pela Igualdade Racial, do presidente Jorge Abrahão.

2 Veja também dados do Ministério do Trabalho Emprego, IBGE, Ipea e Dieese, entre outros, sobre desemprego, salário/renda, carreira e aspectos relacionados ao mercado de trabalho.

3 A faixa etária a que se refere o IBGE é de 18 a 24 anos, ou seja, não são consideradas as pessoas com mais de 24 anos e o dado não trata do número total na população brasileira de pessoas com nível universitário.

4 Síntese dos Indicadores Sociais 2012, com dados referentes a 2011, divulgada em novembro de 2012.

Crédito da foto: Clóvis Fabiano