O cumprimento da meta da Agenda 2030 da ONU exigirá maior mapeamento das cadeias produtivas e mais ação das empresas e governos
O desafio para erradicar o trabalho escravo no mundo até o final da próxima década, de forma a cumprir uma das metas da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, é difícil de ser atingido e exigirá maior mapeamento das cadeias produtivas, mais ação das empresas e governos, além de regulações e fiscalizações que estimulem o setor empresarial a adotar melhores padrões.
Essas foram algumas das opiniões de especialistas presentes tanto na abertura quanto no primeiro painel do seminário “O papel do setor financeiro no combate ao trabalho escravo e o tráfico de seres humanos”, primeiro do gênero realizado no país, com organização do Ministério Público do Trabalho e Repórter Brasil e apoio da Universidade das Nações Unidas e da Liechtenstein Initiative – Comissão Global do Setor Financeiro para a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. O evento foi realizado na sexta-feira, 15 de março, em São Paulo. O primeiro painel foi mediado por Caio Magri, presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social.
Há cerca de 40 milhões de pessoas em condições de trabalho análogas à escravidão, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho. Zerar esse número no planeta até 2030 equivale a eliminar cerca de nove mil empregos forçados por dia em 11 anos. O tamanho do desafio pode ser visto sob o prisma brasileiro. De 1995 até o início do ano, o Brasil libertou 53.607 pessoas de trabalho escravo, segundo Ronaldo Fleury, procurador geral do Trabalho. “São dados oficiais, os números podem ser maiores e as questões orçamentárias poderão ter impacto”, destacou. A crise fiscal tem apertado o orçamento dos ministérios.
“O Brasil, que tem recordes na área em libertação, fez dez dias do que o mundo precisará fazer até 2030 para eliminar o trabalho forçado, o que mostra o tamanho do desafio que teremos pela frente”, afirmou James Cockayne, diretor do Centro para Pesquisa de Políticas da Universidade das Nações Unidas e secretário da Liechtenstein Initiative para o Setor Financeiro. Há desafios e oportunidades no caminho do Brasil.
O ciclo de investimentos previsto no país, com concessões e privatizações em infraestrutura e venda de participações em empresas, pode fazer com que investidores estrangeiros comecem a analisar mais os riscos socioambientais na análise de negócios. Governo federal e Estados discutem conceder estradas, portos, aeroportos, ferrovias, o que poderá implicar a atração de mais de R$ 50 bilhões em investimentos. No leilão que licitou 12 aeroportos no início de março, dois grupos internacionais arremataram posições no Brasil. Esse movimento ocorre em meio à aprovação de legislações internacionais em que processos de análise de riscos sociais ganham espaço nas agendas corporativas em negociações com fornecedores ou clientes. “França e Alemanha já têm leis em que se exige análise de riscos humanos”, destacou Cockayne. Canadá e Noruega discutem legislação similar.
Para Flávia Scabin, coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Direitos Humanos e Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), esses movimentos regulatórios internacionais contrastam com o que se vê no Brasil.
Em novembro passado, foi publicado o Decreto nº 9571, que apresenta as diretrizes nacionais sobre empresas e Direitos Humanos. A legislação estabelece que as responsabilidades são de implementação voluntária das empresas. “No exterior, as legislações vêm impulsionando o tema. No Brasil, um estudo, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho, ainda em conclusão, aponta que o país está na contramão. E as mudanças no Ministério podem também ter impacto”, comentou Flavia.
O atual governo extinguiu o Ministério do Trabalho, que fiscalizava as condições trabalhistas e atuava as empresas. Suas funções foram incorporadas pelas pastas de Economia, Cidadania e Justiça. Flavia também destacou que análises em relatórios de sustentabilidade de grandes empresas brasileiras apontam que poucas tratam da questão de direitos humanos em suas discussões e negócios dentro da cadeia de valor. “Mal se discute o trabalho infantil nas cadeias, por exemplo.”
Um dos desafios será envolver cada vez mais a cadeia de valor na discussão, além de aumentar a disseminação de informações transparentes sobre o assunto, observou Denise Hills, superintendente de sustentabilidade e negócios inclusivos do Itaú Unibanco e presidente da Rede Brasil do Pacto Global. Hoje o banco brasileiro não pode operar com empresas que estejam incluídas na “lista suja” do trabalho escravo, o cadastro de empregadores flagrados com esse tipo de mão de obra, criado pelo Ministério do Trabalho em 2003 e, agora, mantido pelo Ministério da Economia. Nas viagens ao exterior, em contato com clientes, os temas dos direitos humanos e das condições de trabalho são cada vez mais questionados.
Ter informações mais precisas é um ponto essencial na equação para reduzir o problema. “Se evoluíssemos de lista para sistema, mais a informação se disseminaria e ganharia complexidade”, afirmou. Na cadeia de valor, o desafio é também ampliar a escala da adoção de mecanismos de avaliação e checagem das empresas. “Em empresas menores, isso é mais difícil porque exige avaliação independente, o que tem custo. As estatísticas apontam que, entre os 200 maiores PIBs do mundo 154 são empresas, essa pressão de regulação e autorregulação tenderá a crescer.”
Os bancos têm buscado mais informações sobre o assunto, mesmo quando elas não são disponíveis publicamente. Um exemplo está na “lista suja”, que esteve com sua divulgação suspensa entre 2014 e 2016 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a pedido de uma associação de empresas do setor imobiliário. Durante esse período, grandes instituições financeiras seguiram iniciativa da Repórter Brasil, do Instituto Ethos e do Instituto do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e usaram a Lei de Acesso à Informação para obter o nome dos empregadores flagrados com escravos pelo governo e que tiveram suas autuações confirmadas em duas instâncias administrativas.
“Os bancos perceberam a utilidade da lista para o gerenciamento de risco e têm adotado medidas que impactam no crédito”, disse Leonardo Sakamoto, diretor da Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative. Sakamoto também destaca que a inclusão de empresas na “lista suja” tem acarretado levado a quedas no valor de suas ações B3, antigamente conhecida como Bolsa de Valores de São Paulo. Ele mostrou dados de como isso ocorreu com empresas do setor sucroalcooleiro e da construção civil, por exemplo.
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Por: Roberto Rockman, da Repórter Brasil
Foto: Lilo Clareto, da Repórter Brasil