Desde janeiro, o Estado de São Paulo conta com mais um instrumento de combate ao trabalho em condições análogas às de escravidão: a Lei nº 14.946/2013.
Por Juliana Gomes Ramalho Monteiro e Mariana de Castro Abreu*
Em 1995, o governo brasileiro, numa atitude corajosa, confirmou a existência de trabalho em condições análogas às de escravo no Brasil e começou a tomar medidas para erradicá-lo. Todavia, de acordo com estimativas feitas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), existem ainda no país cerca de 20 mil trabalhadores em situação de escravidão.
É evidente que a submissão do trabalhador a tais condições consiste em prática ilegal e sua vedação encontra-se na Constituição Federal, que estabelece expressamente que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante e que não haverá pena de trabalhos forçados no país (artigo 5o, incisos III e XLVII).
Partindo da premissa constitucional, o ordenamento jurídico brasileiro tenta construir instrumentos para que prevaleça a dignidade do ser humano. Nesse sentido, os principais instrumentos jurídicos atuais contra quem utiliza trabalho escravo no Brasil são: a aplicação de sanções administrativas e a inclusão de empresas na “Lista Suja” 2 pelo Ministério do Trabalho e Emprego; ações civis públicas e a celebração de termos de ajustamento de conduta (TAC) no âmbito civil; e instauração de processos criminais contra os administradores e proprietários de empresas.
O Estado de São Paulo, a partir do dia 28 de janeiro de 2013 – Dia Nacional do Combate ao Trabalho Escravo –, passou a contar com mais um instrumento de combate a esse crime: a Lei nº 14.946/2013, que estabeleceu medidas rígidas e imediatas, mediante a aplicação de sanções tributárias, visando punir todas as empresas que utilizem mão de obra escrava na produção de seus bens.
A lei estadual prevê a cassação da inscrição no cadastro de contribuintes do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) de qualquer empresa que se utilize de trabalho em condições análogas às de escravo. Dessa forma, deverão ser canceladas as inscrições das empresas que venderem bens para os quais tenha havido, em qualquer de suas etapas de produção, seja de forma direta ou indireta, a utilização de mão de obra em condições capazes de configurar a redução de pessoa à condição análoga à de escravo. Com a entrada em vigor dessa lei, além das penalidades que antes já eram impostas, as empresas que se utilizarem desse tipo de trabalho ilegal sofrerão punições no aspecto tributário.
A lei aborda, assim, uma questão crucial no âmbito da responsabilidade empresarial: a responsabilidade da empresa pela sua cadeia de fornecedores. Sem dúvida, um dos grandes desafios das empresas, não apenas no combate ao trabalho escravo, mas no respeito aos direitos humanos em geral, é o monitoramento de sua cadeia de fornecedores e a potencial cumplicidade por violações cometidas por esses stakeholders.
Especificamente no tocante ao trabalho escravo, casos recentes de empresas do setor têxtil divulgados pela mídia ilustram a fragilidade da cadeia de fornecedores. Usualmente são encontrados pelo MPT imigrantes ilegais trabalhando como costureiros em oficinas clandestinas, submetidos a condições degradantes, jornadas exaustivas e servidão por dívida. As oficinas clandestinas, por sua vez, repassam sua produção para empresas intermediárias, que vendem para empresas proprietárias de conhecidas marcas, as quais veem sua imagem ligada ao trabalho escravo urbano e são condenadas ao pagamento de indenizações aos trabalhadores.
Com a edição da lei estadual, essas empresas também poderiam ser condenadas no âmbito tributário. No entanto, em 23 de fevereiro de 2013, a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo publicou a Portaria CAT 19/2013, que, embora tenha tido a intenção de efetivar as regulamentações da Lei nº 14.946/2013, acabou por restringir sua eficácia. De acordo com a referida portaria, o procedimento administrativo de cassação da inscrição no ICMS deverá ter início apenas após a comunicação de sentença criminal condenatória da pessoa vinculada à empresa ou, se for o caso, da realização de transação penal entre as partes envolvidas.
Essa necessidade de vinculação entre a prolação da sentença criminal e o início do procedimento administrativo estabelecida pela portaria restringe a eficácia da nova lei, pois ainda há poucas condenações criminais sobre o tema. De fato, a densidade das provas exigidas para responsabilização nas esferas civil e administrativa é muito menor do que aquela exigida para a condenação criminal. Ao condicionar a aplicação da nova lei à prolação de uma sentença criminal condenatória, a Portaria CAT 19/2003 acabou por restringir sua eficácia.
Ocorre que, independentemente da ineficácia acima apontada, é inegável a necessidade de que todas as empresas estejam atentas à mão de obra empregada em sua cadeia de produção, não somente para que sejam evitadas autuações do MPT e danos consideráveis à sua imagem, mas também porque é a coisa certa a ser feita.
Exemplos internacionais de empresas que buscam evitar problemas na sua cadeia de fornecedores podem ser seguidos pelas empresas nacionais. A Ford, por exemplo, utiliza um procedimento que envolve quatro fases para afastar o uso de trabalho forçado na sua cadeia de fornecedores 2. Primeiramente, avalia o risco de sua base de fornecedores, considerando, dentre outros aspectos, o contexto geográfico e o tipo de mercadoria fornecida. Em seguida, a empresa, por meio de suas ordens de compra, exige que os fornecedores atestem que estão em conformidade com os termos que regulam a proibição do trabalho forçado. Em terceiro lugar, a Ford dá treinamento e capacitação para a equipe de compras global e para fornecedores em mercados de alto risco. Por fim, a empresa realiza auditorias regulares em fábricas de fornecedores de alto risco, resultando, se necessário, na realização de planos de ação corretiva, para reavaliação após um período de seis a 12 meses da auditoria original.
A Nike, nos anos 1980 e 1990, pelos escândalos com trabalho forçado na China e na Indonésia e condições de trabalho perigosas no Vietnã, virou sinônimo de trabalho escravo. A imagem da empresa foi manchada e os executivos tiveram de fazer importantes mudanças de rumo. Sem alarde, a empresa abriu centros de treinamento para capacitar trabalhadores das plantas terceirizadas e passou a monitorar mais atentamente não apenas a qualidade de seus produtos, mas também as condições de trabalho, exigindo salários melhores.3
Assim como ocorre com a Nike e a Ford, muitas empresas brasileiras têm, sem dúvida, uma grande rede de fornecedores para monitorar. Mas, se as gigantes americanas conseguiram desenhar planos para superar seus desafios e combater o trabalho escravo, porque as empresas brasileiras não conseguiriam ?
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Notas
1 “Lista Suja” é como é comumente chamado o Cadastro de Empregadores criado pela Portaria Interministerial nº 02/2011, do Ministério do Trabalho e Emprego e da Secretaria Especial de Direitos Humanos. Após a prolação de decisão administrativa relativa a auto de infração que tenha sido lavrado em decorrência de ação fiscal em que tenha havido a identificação de trabalhadores submetidos a condições análogas às de escravo, os nomes dos empregadores, sejam pessoas físicas ou jurídicas, são incluídos no cadastro.
2 A experiência da Ford está disponível em http://human-rights.unglobalcompact.org/case_studies/forced-labour/.
3 As informações sobre o caso estão na edição de 28 de outubro de 2010 do jornal Valor Econômico e no relatório Embedding Human Rights in Business Practice II, do Global Compact da ONU.
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* As advogadas Juliana Gomes Ramalho Monteiro e Mariana de Castro Abreu atuam na área de Responsabilidade Social e Terceiro Setor do escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados. Juliana é também coordenadora do curso de Direitos Humanos e Empresas da FGV-SP.
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Este texto faz parte de uma série de artigos de especialistas promovida pela área de Gestão Sustentável do Instituto Ethos, cujo objetivo é subsidiar e estimular as boas práticas de gestão.
Veja também:
– A promoção da igualdade racial pelas empresas, de Reinaldo Bulgarelli;
– Relacionamento com partes interessadas, de Regi Magalhães;
– Usar o poder dos negócios para resolver problemas socioambientais, de Ricardo Abramovay;
– As empresas e o combate à corrupção, de Henrique Lian;
– Incorporação dos princípios da responsabilidade social, de Vivian Smith;
– O princípio da transparência no contexto da governança corporativa, de Lélio Lauretti;
– Empresas e comunidades rumo ao futuro, de Cláudio Boechat;
– O capital natural, de Roberto Strumpf;
– Luzes da ribalta: a lenta evolução para a transparência financeira, de Ladislau Dowbor;
– Painel de stakeholders: uma abordagem de engajamento versátil e estruturada, de Antônio Carlos Carneiro de Albuquerque e Cyrille Bellier; e
– Como nasce a ética?, de Leonardo Boff.