A sociedade capitalista valoriza mais a competição do que a cooperação e magnifica o indivíduo que se constrói sozinho, e não a sociedade e a comunidade.
Por Leonardo Boff*
A base de toda construção ética, cujo campo é a prática, está nesta pressuposição: a ética surge quando o outro emerge diante de nós.
O outro pode ser a própria pessoa que se volta sobre si mesma, analisa a consciência, capta os apelos que nela se manifestam (ódio, compaixão, solidariedade, vontade de dominação ou de cooperação, sentido de responsabilidade), se dá conta de seus atos e das consequências que deles se derivam. O outro pode ser aquele que está à sua frente, homem ou mulher, criança, trabalhador, empresário, portador de HIV, negro etc. O outro podem ser os outros como uma comunidade, uma classe social, a sociedade como um todo, ou, numa perspectiva mais glabal, a natureza, o planeta Terra como Gaia e, em último termo, Deus.
Diante do outro ninguém pode ficar indiferente. Tem que tomar posição. Mesmo não tomando posição, silenciando e mostrando-se indiferente, já é uma posição.
A ética surge a partir do modo como se estabelece a relação com esses diferentes tipos de outro. Pode fechar-se ou abrir-se ao outro, pode querer dominar o outro, pode entrar numa aliança com ele, pode negar o outro como alteridade, não o respeitando, mas incorporando-o, submetendo-o ou simplesmente destruindo-o.
De todas as formas, o outro representa uma pro-posta que reclama uma res-posta. Desse confronto entre pro-posta e res-posta surge a res-ponsa-bilidade. Ao assumir minha responsabilidade ou demitir-me dela, me faço um ser ético. Dou-me conta da consequência de meus atos. Eles podem ser bons ou ruins para o outro e para mim.
O outro é determinante. Sem passar pelo outro (que posso ser eu mesmo), toda ética é antiética.
Não sem razão, todas as religiões e tradições éticas, do Ocidente e do Oriente, estabelecem como máxima fundadora do discurso ético: “Não faças ao outro o que não queres que te façam a ti”. Ou positivamente: “Faze ao outro o que gostarias que te fizessem a ti”. É a regra áurea.
E como o outro mais outro é o pobre e o excluído, o imperativo ético mínimo e urgente, prévio a qualquer outro, é esse, bem formulado por Enrique Dussel, argentino e filósofo da libertação: “Liberta o pobre e inclui o excluído”.
Apliquemos isso à nossa sociedade. Ela não é uma sociedade qualquer. Precisa ser qualificada: é uma sociedade predominantemente estruturada no modo de produção capitalista, quer dizer, privilegia o capital sobre o trabalho, privatiza os meios de produção e define de forma desigual o acesso aos bens necessários à vida: primeiro quem detém os meios de produção, depois os demais, deixando até de fora quem não tem força social de pressão. São os excluídos, hoje perfazendo as grandes maiorias da humanidade, cujas vidas não têm sustentabilidade, vivem abaixo do nível de pobreza e, em consequência, morrem antes do tempo.
Esse tipo de sociedade valoriza mais a competição do que a cooperação e magnifica o indivíduo que constrói sozinho sua vida, seu bem-estar e seu destino, e não a sociedade e a comunidade dentro das quais, concretamente, o indivíduo sempre se encontra.
A sociedade neoliberal levou até as ultimas consequências essa visão. Por isso, os governos administram desigualmente os bens públicos, privatizam, planejam políticas públicas e sociais pobres para os pobres e ricas para os ricos e poderosos, sejam indivíduos, empresas ou classes; atendem primeiramente a seus interesses, garantem o seu tipo de consumo e são atentos às suas expectativas. Não incentivam as pessoas a olhar para os lados onde estão os outros e assim fazer e refazer continuamente a solidariedade social.
Tais governos não realizam a definição mínima de política, que é a busca comum do bem comum e o cuidado das coisas do povo. Por isso são antiéticos e fautores de atitudes coletivas em contradição com os apelos éticos. Porque não se orientam pelo outro, que é o princípio fundador da ética básica.
A sociedade mundial hoje globalizada nesse modelo antiético promove a globalização como homogeneização: um só pensamento, um só modo de produção (o capitalista), um só tipo de mercado, um só tipo de religião (o cristianismo), um só tipo de música (rock), um só tipo de comida (fast food), um só tipo de executivo, um só tipo de educação, um só tipo de língua (o inglês) etc.
Com a negação da alteridade ou o seu submetimento ou a sua destruição, a sociedade-mundo atual se coloca em contradição com a ética. Essa atitude perversa tem como consequência a má qualidade de vida atual em todos os âmbitos sociais, culturais e ambientais.
Essa atitude é tanto mais grave pelo fato de atingir o substrato físico-químico que possibilita a biosfera e o projeto planetário humano. Não se respeita a Terra como o grande outro e como subjetividade, chamada Gaia. Reduz esse superorganismo vivo, a um baú inerte de recursos naturais, entregues ao bel-prazer humano. Violenta a alteridade dos ecossistemas, depredando seus recursos, ameaçando as espécies, envenenando os ares, poluindo os solos, contaminando as águas, como se esses representantes da comunidade terrenal não tivessem uma história mais ancestral do que a nossa e nós não dependêssemos deles para a nossa própria vida.
O preceito ético-ecológico urgente hoje é este: “Age de tal maneira que tuas ações não sejam destrutivas da Casa Comum, a Terra, e de tudo o que nela vive e coexiste conosco”.
Ou: “Age de tal maneira que tua ação seja benfazeja a todos os seres, especialmente aos vivos”.
Ou :“Age de tal maneira que permitas que todas as coisas possam continuar a ser, a se reproduzir e a continuar a evoluir conosco”.
Ou então: “Usa e consome o que precisas com responsabilidade para que as coisas possam continuar a existir, atendam nossas necessidades e as das gerações futuras, de todos os demais seres vivos, que também junto conosco têm direito de consumir e de viver”.
Precisamos consumir para viver. Mas devemos consumir com responsabilidade e com solidariedade para com os outros, respeitando as coisas em sua alteridade e entrando em comunhão com elas, pois são nossos companheiros e companheiras na imensa aventura terrenal e cósmica.
Como se depreende, não é essa a ética que predomina. A ética vigente é predatória, irresponsável, individualista, perversa para com os outros, tratados com dissimetria e injustiça nos processos produção, de distribuição e de compensação. Ela é cruel e sem piedade para a grande maioria dos seres vivos, humanos e não humanos. Por fim, ela ameaça o futuro da biosfera e do projeto humano.
Para superarmos essa ética altamente destrutiva do futuro da humanidade e do planeta Terra, devemos partir de outra ótica. Só uma nova ótica pode gerar uma nova ética.
A nova ótica que está se difundindo um pouco por todas as partes arranca de outra compreensão da realidade, fundada no conjunto de saberes que perfazem as ciências da Terra.
A tese de base dessa ótica afirma que a lei suprema do universo é a da interdependência de todos com todos. Tudo está relacionado com tudo em todos os pontos e em todos momentos. Ninguém vive fora da relação. Mesmo a lei de Darwin do triunfo do mais forte se inscreve dentro dessa panrelacionalidade e solidariedade universal. Por causa das inter-retrorrelações de todos com todos é que se garantiu a diversidade em todos os campos, particularmente, a biodiversidade e o fato de todos podermos chegar ao ponto a que atualmente chegamos.
Sobrevivemos graças às bilhões de células que interagem entre si em nosso corpo e das bilhões de bactérias, mitocôndrias e outros corpos que vivem dentro das células, células que formam organismos, corpos, sistemas, interconcectados com o meio natural e cósmico.
Essa cooperação de todos com todos funda uma nova ótica, que, por sua vez, origina uma nova ética de con-vivência, cooperação, sinergia, solidariedade e comunhão de todos com todos e com a Terra, com a natureza e com seus ecossistemas. A partir dessa ética, nos contemos, nos submetemos a restrições e valorizamos as renúncias em função dos outros e do todo.
Ou assumimos tal ética e sobre ela fundamos um novo pacto sociocósmico ou corremos o risco de ir ao encontro do pior, ou de fazermos uma travessia altamente destruidora da vida e da humanidade, capaz de dizimar um número incontável de seres vivos.
A partir dos sobreviventes desse eventual colapso, aprender-se-ão as amargas, mas benfazejas lições para uma nova história. Com os valores fundados na cooperação e na solidariedade, inaugurar-se-á outro tipo de ser humano, com outro tipo de civilização e com outro tipo de destino planetário da humanidade. O ser humano, indivíduo social, aprenderá a entender-se como sendo a própria Terra que chegou ao momento de sentir, pensar, amar, venerar e se responsabilizar pelo futuro comum dos humanos, de todos os demais seres e da própria Terra, pátria e mátria de todos.
Uma nova história começará, seguramente mais cooperativa, humanitária, ética e espiritual.
* O teólogo e professor Leonardo Boff é autor de mais de 60 livros sobre teologia, filosofia, espiritualidade, antropologia e mística.
Este texto faz parte de uma série de artigos de especialistas promovida pela área de Gestão Sustentável do Instituto Ethos, cujo objetivo é subsidiar e estimular as boas práticas de gestão.
Veja também:
– A promoção da igualdade racial pelas empresas, de Reinaldo Bulgarelli;
– Relacionamento com partes interessadas, de Regi Magalhães;
– Usar o poder dos negócios para resolver problemas socioambientais, de Ricardo Abramovay;
– As empresas e o combate à corrupção, de Henrique Lian;
– Incorporação dos princípios da responsabilidade social, de Vivian Smith;
– O princípio da transparência no contexto da governança corporativa, de Lélio Lauretti;
– Empresas e comunidades rumo ao futuro, de Cláudio Boechat;
– O capital natural, de Roberto Strumpf;
– Luzes da ribalta: a lenta evolução para a transparência financeira, de Ladislau Dowbor; e
– Painel de stakeholders: uma abordagem de engajamento versátil e estruturada, de Antônio Carlos Carneiro de Albuquerque e Cyrille Bellier.