Muitos países se blindam do avanço do coronavírus fechando suas fronteiras. Muitas vezes, limitando gradualmente a mobilidade e endurecendo também internamente as quarentenas. As medidas de exceção já não têm mais o terrorismo como alvo, mas uma pandemia. Assim, o coronavírus confina um terço da humanidade em todos os continentes, suspende manifestações em local público ou privado, inclusive de caráter cultural, e, não raro, se vê a militarização das cidades ou regiões para a contenção da mobilidade e a garantia do isolamento.
Países do continente Africano que mal contiveram o ebola, como Congo, Líbia e Mali, já confirmam seus primeiros casos de coronavírus e confinamentos. Segundo dados do Unicef, 63% da população de áreas urbanas da África Subsaariana não podem lavar as mãos por falta de água e sabão. O mesmo acontece em periferias brasileiras. De um lado, o Fundo Monetário alerta o duro golpe que o coronavírus representará para a África Subsaariana, de outro, Michelle Bachelet, apela para a flexibilização ou suspensão de sanções a países com infraestrutura e sistemas de saúde frágeis, como Coreia do Norte, Cuba, Venezuela e Irã.
Não há dúvidas quanto à necessidade das pessoas voltarem aos seus trabalhos e aos compromissos públicos e sociais. Não há dúvidas quanto a urgência de evitar o aprofundamento da miséria e da insegurança alimentar. Mas, talvez, a pausa possibilite intensificar reflexões.
Essa crise tem uma característica especial: as pessoas e famílias deixam de comprar itens que não são essenciais e que podem ser postergados e uma variedade grande de serviços não são consumidos. Esse efeito não tem precedentes na história e implica em quedas drásticas nos PIBs nacionais.
Líderes do G20 formaram uma frente unida e decidiram apoiar a iniciativa conjunta da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial para desenvolver um pacote econômico e fortalecer as redes de segurança financeira global. Mais do que apoiar os países emergentes e em desenvolvimento, o G20 pretende manter o comércio internacional sem travas, assim como o fluxo de mercadorias e financeiro transfronteiriço. Mas o G20 ainda fala de uma recuperação ao modo de um gráfico “V”, ou seja, toda queda brusca provocada pela paralisação global será seguida de uma recuperação acentuada. Miríades de economistas e lideranças trabalharão, sobretudo, para que essa não se torne uma recuperação ao modelo de um “L”. Para isso, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) recomenda, além das medidas sanitárias, transferências de recursos para trabalhadores e adiamento da tributação das empresas. Enquanto as expectativas econômicas desabam, governos em todo o mundo tomam medidas para apoiar trabalhadores e empresas durante a pandemia. No Brasil, a campanha encabeçada pelo Instituto Ethos, a “Renda Básica que Queremos!”, foi aprovada na Câmara e no Senado. Mesmo que as rendas básicas pululem como alternativas emergenciais e temporárias, não podemos perder de vista a utopia da renda básica universal, da tributação das grandes fortunas e da garantia de um Estado de bem-estar social, na contramão do que as grandes economias experimentavam com as medidas neoliberais de desmontes dos serviços públicos e cortes agressivos em políticas sociais, sob acusações de que o Estado gasta mal com políticas sociais. Mas, não podemos esquecer que, pelo menos no caso brasileiro, políticas sociais foram, sobretudo, impactadas por políticas irresponsáveis de desoneração fiscal, mesmo de setores poluidores e de grande impacto socioambiental. O Estado nunca foi mínimo no que toca regular em favor do capital.
A infraestrutura em saúde exigida para o enfrentamento ao coronavírus em todo o mundo e as medidas de antecipação ao colapso dos sistemas de saúde, dão demonstração de que o investimento nos sistemas públicos de saúde não são modelos fracassados. O modelo de acesso público, universal e gratuito continua sendo não apenas necessário, como possível. A partir da crise do coronavírus talvez fique mais fácil compreender que gasto social é uma garantia para que as pessoas continuem na economia de mercado.
Ora ouvimos falar de um novo plano Marshall para a Europa, ora de medidas de recuperação aos moldes de um novo New Deal. O que é certo é que os déficits públicos e o crescimento do endividamento pesarão nas contas dos governos nacionais e subnacionais. O governo brasileiro, além de não cumprir a meta de gastos definida para o ano de 2020, se verá às voltas de um grande endividamento nos próximos anos. Não teremos como sair da recessão se não for através de uma retomada do investimento social e do papel do Estado. Com o coronavírus, o mundo mudou, não podemos nos dar ao luxo da obsolescência da mão de obra. Quais as implicações da dívida pública? Juros. O Estado é o único agente cujos gastos geram receitas a si mesmo. Até aqui, quando o Estado gerava gastos com políticas sociais, dizia-se que gastava mal, mas quando gerava gastos com juros da dívida, o mercado financeiro não se aquietava. Paradoxalmente, o Estado brasileiro despendia muito mais remunerando as elites financeiras credoras da dívida. O fluxo dos juros era apropriado pelos bancos, fundos de investimento e elites rentistas. Mas, o foco dos ajustes sempre recaia sobre os gastos sociais.
E agora? Será que podemos começar a pensar em também reverter essa lógica conceitual? Com a recessão e com os resgates das empresas e das famílias virá a dívida pública. As escolhas políticas tenderão a manter os pagamentos de juros ou diminuirão significativamente o seu pagamento? Diminuir o pagamento dos juros implicaria em libertar o Estado das amarras com os interesses da acumulação rentista-patrimonial. Mas, talvez lhe houvesse orçamento para entregar os bens e serviços para a sociedade e perenizar as vantagens de uma renda cidadã. Precisamos ficar atentos com o déficit e com as taxas de juros, elementos que fazem o Estado ser capturado pelas elites que buscam determinar os rumos da política fiscal e monetária. Não podemos achar isso normal. Mais à frente, os déficits eventuais dos gastos da recuperação, dos gastos sociais e de sistemas de repartição previstos pela Constituição, poderão voltar a ser encarados como dispendiosos, ineficientes e mal administrados. Mas, certamente o déficit aos cofres públicos gerados por pagamentos da dívida, não. O rentismo sempre precisará de juros altos que paralisem a economia brasileira e alimentem o desemprego. Portanto, temos hoje a oportunidade de rever esse problema e transformar essa lógica.
Por: Edson Lopes, gerente-executivo de Eventos do Instituto Ethos
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