Ethos, Ipam, senadores e o ex-número 2 do Ministério da Fazenda se unem para enfrentar o ceticismo quanto à adoção de política fiscal verde no Brasil.

O economista Odilon Guedes, especialista em finanças públicas e membro do Conselho Regional de Economia de São Paulo (Corecon-SP), costuma lembrar em suas aulas e nos debates para os quais é convidado a falar sobre reforma tributária que a cobrança de impostos tem sido causa ou pretexto para inúmeras revoluções e transformações sociais ao longo dos séculos. Foi assim quando o rei João Sem Terra, da Inglaterra, foi forçado a assinar a Carta Magna, em 1215, e também na Guerra de Independência dos Estados Unidos, conquistada em 1776, na Revolução Pernambucana de 1817 e na Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, entre 1835 e 1845.

Ninguém em sã consciência espera que seja necessário um movimento armado no Brasil para destravar as negociações em torno da reforma tributária. No entanto, o assunto tornou-se tão complicado que um grupo suprapartidário corre para formular propostas pragmáticas a fim de criar no país uma política tributária verde que não dependa da aprovação no Congresso de uma reforma mais abrangente e radical no sistema tributário brasileiro.

A luz no fim do túnel tributário do país pode ter sido acesa em Brasília, no dia 29 de outubro de 2013, quando se realizou no Senado o seminário “Política Tributária e Sustentabilidade: uma Plataforma para a Nova Economia”, promovido pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), em parceria com o Instituto Ethos e com a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (CAE). O evento foi feliz ao colocar à mesa representantes do setor privado, da sociedade civil, especialistas, governo federal e parlamentares de diferentes partidos (PT, PSB, PSDB e PP). Como resultado do seminário, foi constituído um grupo para alinhavar até o próximo semestre um documento com recomendações de medidas para desonerar negócios sustentáveis da cobrança, por exemplo, de IPI, ICMS, ISS, PIS/Cofins e CSSL.

Por outro lado, o grupo também analisará um conjunto de propostas para incentivar a economia verde e atenuar a concorrência desleal causada por produtos intensivos em carbono e poluentes.

Um pacote de propostas foi encomendado pelo Ipam ao economista Bernard Appy, diretor de políticas públicas e tributação da LCA Consultores e ex-secretário executivo do Ministério da Fazenda no governo Lula. Contando com a colaboração de sua tradicional parceira, a E2 Economia.Estratégia, Appy apresentou no seminário do Senado, um conjunto de propostas divididas em três tópicos: Cide-Carbono, voltada para taxar os combustíveis fósseis e desestimular o abate tardio de bovinos (com idade igual ou superior a 24 meses, quando as emissões de metano do gado sobem aceleradamente); desoneração fiscal da madeira beneficiada oriunda de manejo sustentável na Amazônia; e isenção total do IPI e do PIS e da Cofins para o arame farpado, que chega a representar até 40% do custo da reforma do pasto e recuperação florestal.

Outra série de medidas foi apresentada pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB), visando aumentar a competitividade da madeira nativa proveniente de manejo sustentável e das concessões florestais na Amazônia. “Buscaremos o apoio dos candidatos à Presidência da República ao documento que o grupo do Senado produzirá”, diz o advogado André Lima, assessor de políticas públicas do Ipam.

Longe do imbróglio constitucional

A estratégia do Ipam e do Ethos para emplacar as propostas é lançar mão do arcabouço legislativo já existente, evitando o quanto for possível entrar em imbróglios constitucionais. “Não seria necessário mexer na Constituição para criar a Cide-Carbono”, explica Appy, que foi vice-ministro da Fazenda nas gestões de Antônio Palocci e Guido Mantega. A Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) já é prevista pela Constituição Federal (CF), em seu artigo 149, sendo sua criação prerrogativa exclusiva da União. Há, também, inúmeras leis e decretos com dispositivos relativos a incentivos para promover a proteção ambiental, o uso racional dos recursos naturais e o desenvolvimento sustentável.

A começar pelo artigo 170 da CF, que, segundo Lima, autoriza mudanças imediatas na política tributária de modo a premiar a produção limpa e desestimular negócios insustentáveis. Em seu inciso VI, o artigo institui, como um dos princípios da ordem econômica, a “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”. “Precisamos de uma transição que institua o imposto sobre as emissões de carbono e reduza gradativamente os incentivos a produtos e empreendimentos que contribuem para a poluição, o desmatamento e a mudança climática”, propõe o advogado.

Há diversos dispositivos legais presentes nas esferas federal, estadual e municipal que estabelecem incentivos fiscais, isenções, abatimento tributário e restrições ao financiamento por parte dos bancos oficiais. Mas não há monitoramento oficial da implementação desses mecanismos nada desprezíveis para acelerar a transição rumo a uma economia de baixo carbono e limpa.

Para sanar parcialmente a lacuna, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) contratou recentemente uma consultoria para analisar experiências bem-sucedidas de instrumentos econômicos para o desenvolvimento sustentável (15 iniciativas estaduais e 10 municipais), que poderão ser replicadas, sob a coordenação do Programa Nacional do Meio Ambiente (PNMA), financiado pelo Banco Mundial.

Quase lanterninha

De acordo com o Índice de Imposto Verde da consultoria KPMG, o Brasil está na 18ª posição entre as 21 maiores economias do mundo na aplicação de incentivos e restrições fiscais e tributárias orientadas a impulsionar negócios sustentáveis.

No relatório que apresenta o indicador, publicado em abril, a KPMG analisou os sistemas tributários desses países para verificar a quantidade e a abrangência de incentivos e medidas restritivas que influenciam a atividade corporativa em relação a nove áreas da política ambiental: eficiência energética; emissões de carbono e mudanças climáticas; inovações verdes; combustíveis e energia renováveis; edifícios verdes; veículos verdes; eficiência hídrica; eficiência na utilização de materiais e gestão de resíduos; ecossistemas; e controle da poluição.

Nesse índice, a pontuação de um país aumenta consoante a proatividade do respectivo governo no uso de um sistema tributário para estimular negócios sustentáveis e realizar objetivos de sua política ambiental. Não significa necessariamente, portanto, que um país é mais “verde” que os outros, adverte a KPMG1.

A posição do país melhora um pouco (12º lugar) quando se levam em conta apenas os incentivos, mas despenca para perto da lanterninha (19ª posição), acompanhado por Argentina e México, na classificação específica para penalidades fiscais sobre os poluidores. Segundo a consultoria, a pontuação mais alta do Brasil na classificação do item “incentivos fiscais” deve-se aos estímulos à pesquisa e inovação verde e à energia renovável, incluído aí o Inovar-Auto, o novo regime automotivo estabelecido pelo governo em outubro de 2012 para promover desenvolvimento tecnológico, inovação, segurança, proteção ambiental, eficiência energética e qualidade nos veículos fabricados no país.

Mas o Brasil foi inserido pela KPMG no grupo dos países com pior desempenho no tema da tributação verde, ao lado de Argentina, México e Rússia. O estudo identificou mais de 200 incentivos e sobretaxas relevantes para a sustentabilidade corporativa nos 21 países incluídos no índice. Pelo menos 30 desses estímulos e sobretaxas foram introduzidos desde janeiro de 2011.

Sistema injusto

É difícil encontrar quem discorde da avaliação de que o sistema tributário brasileiro favorece a concorrência desigual dos produtos e serviços mais limpos com a economia poluidora. É socialmente injusto, pouco amigável à geração de empregos formais, hostil aos investimentos produtivos, complexo, pouco transparente e incentiva a exportação de commodities em vez de produtos de maior valor agregado. Dados do Observatório da Equidade do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) indicam que 48,8% da renda dos que ganhavam até dois salários mínimos era gasta em impostos em 2004, ao passo que a proporção era bem menor na faixa superior a 30 salários mínimos: 26,3%. O desequilíbrio é fruto em grande parte do peso maior no Brasil dos impostos sobre o consumo, chamados de regressivos por cobrarem alíquota igual do mesmo produto comprado pelo pobre e pelo rico.

No Brasil, 44% da arrecadação tributária provêm do consumo, enquanto nas nações desenvolvidas a maior carga fica com os impostos sobre a renda, que costumam ser mais progressivos (cobra-se mais de quem ganha mais). Exemplo eloquente de tributo regressivo é o ICMS, que só pode ser alterado por consenso no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que reúne os secretários da Fazenda dos 26 Estados e do Distrito Federal. A arrecadação do tributo alcançou R$ 327 bilhões em 2012, ou 7,4% do PIB. “Existe uma guerra fiscal entre os Estados. O caminho para uma tributação verde deve começar pelos impostos federais”, recomenda o deputado federal Ricardo Berzoini (PT-SP).

Para municiar sua estratégia de convencimento do Legislativo e do Executivo, o Ipam começou a estudar recentemente o tamanho da pegada de carbono na carga tributária brasileira. A entidade constatou que os incentivos fiscais (ou gastos tributários) do governo federal somaram R$ 328 bilhões, de 2008 a 2012, em redução de impostos, principalmente nos setores industrial2, de transporte3, agropecuário4 e energético5. São justamente os que registram maior crescimento nas emissões de gases de efeito estufa nesta década, enquanto a participação absoluta e relativa do desmatamento desaba. Em contrapartida, segundo o Ipam, menos de R$ 10 bilhões foram investidos pelo poder público em crédito e incentivos tributários para atividades sustentáveis.

“Apesar de a correlação não ser estritamente causa e efeito, ela mostra uma tendência. Da maneira como são concedidos hoje, sem serem pautados pela política de mudança do clima, incentivos como os concedidos à expansão agropecuária no Cerrado e na Amazônia anulam os efeitos de programas positivos, como o de agricultura de baixo carbono, o ABC”, reclama Lima.

Barreiras conceituais

Por detrás dessa distorção na política de desoneração fiscal, existem barreiras conceituais da economia convencional, a exemplo da metodologia empregada pelas empresas para medir seu desempenho financeiro.

Como sublinha o professor Ricardo Abramovay, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, é muito difícil para a indústria incorporar as externalidades socioambientais (custos não previstos no orçamento da fábrica) nos processos produtivos. “Os setores mais poluentes fechariam as portas se incluíssem nos seus balanços os custos ambientais apontados por um estudo da KPMG”, diz Abramovay, aludindo à publicação Expect the Unexpected: Building Business Value In A Changing World (“Espere o Inesperado: Construindo Valor para os Negócios em um Mundo em Mudança”, tradução da KPMG para o português), lançado em fevereiro de 2012 pela consultoria.

Utilizando cálculos produzidos pela consultoria Trucost, o trabalho da KPMG revelou que os custos ambientais – sobretudo, emissões de gases-estufa, captação de água e geração de lixo – nos setores de produção de alimentos, energia elétrica, metalurgia e mineração representaram em 2010, respectivamente, 224%, 87%, 71% e 64% do Lajida (lucro bruto)6. Na média dos 11 setores analisados, os custos ambientais abocanharam a polpuda fatia de 41 centavos para cada dólar de Lajida gerado, mostra o estudo, apontando, ainda, que esses custos dobram a cada 14 anos.

Em tese, uma reforma tributária verde poderia corrigir ao menos parte dessas distorções, à medida que explicitaria custos socioambientais hoje ocultos no retrato financeiro das companhias. Isso ocorreria tanto ao penalizar externalidades com impostos, sobretaxas e contribuições, tais como emissões de carbono e outros gases poluentes e captação excessiva de água em regiões com déficit hídrico e gastos elevados de tratamento, como ao premiar a diminuição de impactos, tornando a produção limpa mais competitiva. Mas benefícios tributários precisam estar atrelados ao incremento na produtividade e nos investimentos em inovação, pondera Claudemir Malaquias, assessor do secretário da Receita Federal: “Não seria sensato usar incentivos para esconder ineficiências”.

Tema periférico

Outro grande desafio para instituir uma política fiscal e tributária verde reside no tratamento periférico que a sustentabilidade recebe da área econômica nos governos federal e estaduais e nas prefeituras, com raras exceções, como o Acre e o Amapá. No Ministério da Fazenda (MF), foi criada, em 2010, a Coordenação-Geral de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (Comac), subordinada à secretaria adjunta que cuida da política agrícola na Secretaria de Política Econômica (SPE). Com quatro profissionais, a constituição da Comac abriu oportunidades inéditas para uma presença mais proativa do MF na formulação e implementação de políticas de desenvolvimento sustentável no país.

Com o propósito de construir uma política fiscal verde no Brasil, a Embaixada Britânica contratou em 2012 o Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV-Eaesp (GVces) para compilar ferramentas de avaliação da política fiscal brasileira, visando capturar seu potencial para reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEE) e expandir o PIB e o nível de emprego. Publicado em outubro e entregue ao MF, o estudo Política Fiscal Verde no Brasil concluiu que, para ser efetiva, tal política não pode se isolar das demais decisões governamentais, as quais tampouco podem colidir com princípios basilares como os da proteção ambiental.

Além disso, o estudo aponta instrumentos fiscais que podem servir na promoção de uma economia verde e recomenda prioridade aos incentivos, sem que isso gere prejuízo às contas públicas, em vez de privilegiar as sobretaxas aos poluidores, e à redução nos subsídios para as atividades poluidoras e emissoras de carbono. Também sugere que se evite a criação de um tributo ambiental com finalidade meramente arrecadatória, desprovido de qualquer vínculo com a atividade estatal de proteção ao meio ambiente.

Uma segunda etapa desse projeto volta-se para a análise do impacto de uma política fiscal verde no PIB, no emprego e nas emissões de gases-estufa, envolvendo, além da FGV, a Coppe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Se já existe a base constitucional para uma reforma tributária verde no país, o mesmo não pode ser dito para os instrumentos que a viabilizarão. Há muito o que pesar na balança, e interesses econômicos poderosos, vinculados às indústrias poluentes, que terão de ser enfrentados pela nova economia.

A boa notícia é que o grupo encarregado pelo Senado para estudar mecanismos de tributação verde já inicia os trabalhos com uma série de propostas sobre a mesa, algumas bastante inovadoras, como a Cide-Carbono.

Por José Alberto Gonçalves Pereira, com a colaboração de Alexandre Spatuzza

Matéria publicada originalmente na revista Página 22 de 6 de janeiro de 2014. A reportagem de Página 22 participou do evento em Brasília a convite do Ipam.

1 Publicação disponível em bit.ly/196vMAy;
2 A exemplo do corte de alíquota do IPI cobrado sobre automóveis;
3 Isenção da Cide na venda da gasolina;
4 Desonerações várias, inclusive sobre os fertilizantes;
5 Isenção de PIS e Cofins para termelétricas a gás natural e a carvão;
6 Lucro antes dos juros, impostos, depreciação e amortização, mais conhecido por sua sigla em inglês, Ebitda.