Vivemos um período complexo e regado de insegurança tanto nas relações e nas emoções, quanto nas tarefas que costumavam passar desapercebidas e que agora nos fazem refletir. Talvez a maior complexidade que temos enfrentado esteja em nossos dilemas diários, em que o momento de crise coloca à prova nossos valores, princípios, escolhas e prioridades.
Esse período é favorável para o surgimento de dúvidas que envolvem as tomadas de decisões de todos os atores da sociedade, como: qual o equilíbrio entre a reclusão e uma economia saudável e ativa? Quando o sistema público atingir sua capacidade máxima, quem poderá ser escolhido para ser salvo? Devemos priorizar a proteção e direitos dos indivíduos ou podemos infringi-los em nome de um interesse coletivo? Os chamados dilemas éticos são moralmente muito complexos de solucionar ou até mesmo insolúveis.
No âmbito econômico, o principal dilema ético está entre: a adoção de políticas para o enfrentamento da pandemia e os desafios de manter a economia ativa e reduzir os impactos econômicos sobre o mercado e evitar o aprofundamento da pobreza, da desigualdade e, no limite, da fome. As empresas também enfrentam seus dilemas equivalentes, entre a sobrevivência financeira e a preservação do quadro de colaboradores e seu bem-estar. O equilíbrio entre as contas e a responsabilidade social é uma equação delicada e se torna mais complexa quanto menor a capacidade financeira.
É função do Estado, em última instância, garantir mecanismos que respondam ao enfrentamento da crise econômica. Um possível alívio ao impasse entre a quarentena e a economia, seria o Estado reduzir os impactos a partir da emissão de moeda e da dívida pública. No entanto, essa decisão impõe um novo desafio, de efeito de médio a longo prazo, que é a política a ser implementada para pagar esse endividamento, em que as consequências são duras e podem ser igualmente complexas.
No campo da saúde, os dilemas éticos são intensificados em um cenário de pandemia e calamidade pública. A demanda por equipamentos, medicamentos e tratamentos se intensificam, o consumo, no limite da disponibilidade (escassez), leva a decisões complexas como decidir quais vidas valem mais para a sociedade, em que o valor social de cada pessoa é medido e avaliado. Não é simples e nem justo deliberar sobre a vida de indivíduos com base em valores sociais, sendo posto um outro dilema a ser enfrentado na tomada de decisão que alivie a consciência individual da escolha.
Sobre a ética digital está um dos dilemas mais complexos a ser compreendido, provavelmente porque não temos dimensão da profundidade que seus impactos possam ter em nossa sociedade. Somos diariamente tentados a ceder às facilidades da tecnologia como resposta e aliada no enfrentamento da crise, sem a total compreensão dos riscos ou do que estamos concedendo. No contexto da pandemia, as soluções tecnológicas nos apoiam a lidar com a quarentena, seja através da comunicação pessoal ou profissional, ou a prestação de serviços à distância, como a telemedicina e os estudos. No entanto, não se pode deixar de refletir entre o equilíbrio das relações de força entre indivíduos e seus direitos e os benefícios da tecnologia.
É essa ferramenta que, ao mesmo tempo em que nos incluiu em uma sociedade reclusa, nos exclui de nossa totalidade, aprofunda nossas desigualdades e provoca desequilíbrios em nossas relações. O compartilhamento de dados para uso do controle da pandemia e a vigilância digital nos colocam outros tantos dilemas. O uso das informações pode ser benéfico para o combate à pandemia, ao mesmo tempo em que pode gerar repúdio ou ferir direitos fundamentais (como usado nos países asiáticos, por exemplo, para monitorar e controlar infectados, além de notificar pessoas que estavam próximas aos infectados).
Os dilemas em um contexto de situações extremas intensificam a luta pela sobrevivência. As reflexões sobre essas questões são importantes, apesar de dolorosas, e fazem parte do processo que enfrentamos. São elas que possibilitarão nos conduzir a compreensão de qual é a sociedade que desejamos ver no futuro.
Se estamos comprometidos com a construção de uma sociedade justa, igualitária e sustentável, nossos parâmetros precisam ser outros além de capital, produtividade, renda e trabalho. Não podemos ser determinados exclusivamente pelas nossas relações econômicas, precisamos retomar o contexto amplo das relações sociais e nos valermos de outras variáveis para estabelecermos novos padrões.
Princípios e valores como a ética, transparência, integridade e respeito devem ser mantidos em quaisquer que sejam as tomadas de decisões, de maneira que nenhuma medida lacere os direitos humanos de cada indivíduo.
Por: Paula Oda, coordenadora de Projetos de Integridade do Instituto Ethos
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