Precisamos continuar repensando diariamente nossa relação com o meio ambiente, com a cultura e com os nossos modos de ser, estar e produzir no planeta. Desde o século XVIII, quando a premissa iluminista se alastrou pelo mundo, tomamos como narrativa predominante a dominação do espaço a partir de uma perspectiva depredatória. Isso significa que para o homem adentrar nos meios que ocupa, entende como necessário subordinar a natureza a sua vontade. A adaptação ao meio não é a narrativa dominante, pelo contrário, a adaptação mostraria fraqueza.
Quando a espécie humana começa a dominar o meio ambiente, faz questão de aniquilar as peculiaridades regionais, tomando como padrão único de ocupação do solo a construção de cidades e, consequentemente, grandes centros. Contudo, como querer que o comportamento do meio ambiente, tão singular em cada canto do globo, responda de maneira igualitária às nossas intervenções? Destruímos a vegetação, mudamos o curso dos rios, cobrimos o solo, poluímos em demasia. Sofremos, então, as consequências da intervenção no território. Vivemos, inclusive, uma pandemia global que, dentre outras causas, é resultante dessa influência imprudente nos ecossistemas globais.
Fazemos da convivência na Terra uma grande disputa entre homem e natureza. Por si só, esse cenário de guerra pressupõe perdedores que são, paradoxalmente, os que menos destroem e os que mais precisam de um meio saudável para sobreviver. Apesar desse discurso parecer dicotômico – humanidade versus planeta – , quem mais sofre com as intervenções violentas no ambiente, por uma perspectiva de direitos humanos, são as minorias. Se estamos falando de consequências às medidas de dominação dos espaços, aqueles – e, sobretudo, aquelas – que habitam áreas de risco sofrem mais com os terremotos, tsunamis, deslizamentos e pandemias. Populações vulnerabilizadas moram nas periferias urbanas e nas regiões campestres mais afastadas, onde menos as políticas públicas e o desenvolvimento socioeconômico têm adentrado para conter os excessos da intervenção ambiental.
Negamos direitos sociais para muitos brasileiros. E também o fazemos dentro de uma lógica estruturalmente racista, tanto em termos socioeconômicos como ambientais. Parte da população que mais sofre com as mudanças climáticas é aquela que tem menos direitos garantidos para enfrentar as catástrofes ditas “naturais”. No caso da pandemia da Covid-19, conseguimos vislumbrar esse quadro no número de mortos nas periferias em contraste com os números em bairros nobres. De acordo com o 3° boletim quinzenal sobre a evolução da Covid-19 no Município de São Paulo, até 21 de abril de 2020, a distribuição espacial dos óbitos pela doença se concentrava, em sua maioria, nos Distritos Administrativos de Brasilândia (67 óbitos), Sapopemba (64 óbitos) e São Mateus (52 óbitos).
Nota-se que os bairros de São Paulo que têm mais mortes por Covid-19 são os mais pobres. Contudo, vale ressaltar que estas regiões não são aquelas com mais casos da doença, o que evidencia, ainda mais, como a vulnerabilidade social é um fator relevante nesta matemática. Não por acaso, o número de casos se concentra em sua maioria na Zona Oeste e Sudeste, nos bairros Morumbi (332 casos), Jardim Paulista (238 casos) e Vila Mariana (264 casos), regiões em que as taxas de mortalidade se mostraram inferiores à média municipal. Morrem muito mais pobres que ricos: uma equação que vem sendo desigual desde que este sistema “colonizador” do território foi instaurado. Desigualdade esta, traduzível sob a lente da noção de injustiça ambiental.
Urgente enquanto pauta social, ambiental e política, a justiça ambiental surgiu das experiências dos povos do Sul Global na luta histórica contra as medidas de intervenção em suas terras e culturas e que se desenvolveu como conceito enquanto reivindicações de movimentos sociais negros norte-americanos, que chamavam atenção para a imposição especial de ônus ambientais aos grupos socialmente marginalizados. É a desigualdade estratégica e velada de distribuição de benefícios e gravames que toma por critério seletor do desenvolvimento econômico: a acumulação de alguns implica o ônus de outros, inclusive em termos socioambientais.
Chegamos, então, a reflexão crucial desse texto: quem se responsabiliza por essas mortes? Evidente que o modelo desenfreado de dominação do meio ambiente está fadado aos desastres. A exploração dos recursos, dos modos de vida e trabalho está nos levando a níveis de desigualdade insustentáveis e desumanos. E essa responsabilidade, não apenas os entes públicos devem carregar: em uma visão macro, nos arriscamos a apontar que os entes privados e a sociedade civil também precisam repensar seu papel social e qual mundo quer deixar aos demais.
As críticas ao Estado são contundentes e necessárias para avançarmos na concretização de políticas públicas, entretanto, o particular também precisa se atentar para superar os desafios sociais coletivos que nos são postos. Como sua empresa pode contribuir para um contexto global (e local) mais sustentável, igualitário e saudável?
Por: Gabriel Mantelli, professor de direito da Universidade São Judas, e Julia de Moraes Almeida, mestranda em direito pela Universidade de São Paulo; ambos são diretores do Espaço Almeida Mantelli
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