Por que eventos como o Festival +DH são importantes diante da conjuntura atual?
Vivemos dias de luta e não é de hoje. A pandemia pela Covid -19 acentuou desigualdades já existentes no Brasil, trazendo à tona novos desafios, que exigiu de todos os atores sociais posicionamento e ação para conter os impactos do vírus. De lições aprendidas, a pandemia demonstrou também que o país não estava preparado para lidar com essa realidade, muito porque as fragilidades das políticas de seguridade, políticas de proteção social e, principalmente, de universalização de serviços ficaram mais evidentes, o que acarretou no aumento da vulnerabilidade de muitos brasileiros e brasileiras. A pandemia pela Covid-19 apenas intensificou os gargalos socioeconômicos, territoriais e políticos que já enfrentávamos no Brasil, marcando um cenário de retrocessos e de extremas violações de direitos.
Dados alarmantes demonstram o aprofundamento das desigualdades sociais no Brasil nos últimos anos e especialmente durante a pandemia. O país enfrenta um dos maiores números de desemprego (14,1 milhões de pessoas desempregadas, segundo PNAD 2021) quando em comparação com os dados antes da pandemia. Em 2021, o Brasil retorna ao Mapa da Fome das Nações Unidas (havia saído em 2014) tendo hoje, 58 milhões de famílias correndo o risco de deixar de comer por não ter dinheiro (Food For Justice, 2021). Presenciamos o país começar o processo de vacinação com uma mulher negra em 2020 e, em 2021, assistimos o país vacinar duas vezes mais pessoas brancas do que negras (Agência Pública, 2021). Os dados se tornam mais preocupantes quando observamos recortes de grupos sociais mais vulneráveis, como é o caso da população negra que historicamente é marcada pela inacessibilidade aos serviços de saúde, educação e proteção social.
Do ponto de vista de gênero, de acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, houve um aumento médio de 14,1% do número de denúncias de violência doméstica nos primeiros quatro meses de 2020 em relação ao ano de 2019, demonstrando que a vulnerabilidade e a violência contra a mulher antecedem a pandemia. E quando olhamos para os dados neste último ano de pandemia, temos que dezessete milhões de mulheres afirmaram ter sofrido algum tipo de violência, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Além disso, presenciamos a fragilização e ao desmonte de instituições e de instrumentos que garantiam uma estrutura essencial de direitos e políticas públicas emancipadoras que proporcionavam (ainda que incipiente) um salto qualitativo das demandas populares no Brasil, como o Bolsa família, Auxílio Emergencial, entre outras.
Ao nos depararmos com esse cenário, temos que é de responsabilidade de todos os atores sociais (cada qual em seu espaço de atuação) em revertê-lo, buscando promover e garantir direitos, cada qual em sua forma de atuação e responsabilidades. Uma vez que vivemos em um estado democrático de direito, cujo um dos pilares essenciais são os direitos humanos fundamentais, o que precisamos é justamente de uma mobilização e comprometimento desses atores (empresas, organizações, sociedade civil e poder público) na promoção de políticas, práticas, iniciativas, ferramentas, instrumentos e métricas que garantam a dignidade humana para todos e todas e não apenas para uma parcela da população.
Iniciativas como o Festival +DH21 se inserem nesse contexto, sendo um convite para que a sociedade como um todo esteja mais próxima dos principais temas discutidos na agenda de direitos humanos em 2021, dentre eles a agenda de diversidade e inclusão, passando pelos recortes de raça, gênero, população LGBTQIAP+, migração e refúgio, egressos do sistema prisional, entre outras lentes. Isso porque falar de diversidade e inclusão é falar sobre direitos humanos. Uma vez que os atores sociais se comprometem em incluir a diversidade em suas estruturas e como parte estratégica de sua atuação, estão contribuindo para a redução das violências que marcam esses grupos sociais historicamente. Para além, estão refletindo a pluralidade da sociedade, contribuindo para tomadas de decisões mais coesas e assertivas.
Ao pensar sobre diversidade e inclusão, engana-se quem pensa somente em políticas de contratação. O trabalho ainda é um dos pilares centrais da sociedade, mas existem outras práticas nessa agenda que também podem contribuir com uma transformação social e que envolve a responsabilidade de todos os atores sociais. E fundamental que sejam discutidas as principais práticas identificadas hoje que atuam no combate às desigualdades. Temos que não só refletir a respeito da nossa atuação coletiva em 2021, mas o que esperamos e queremos levar para 2022, considerando que será um ano com premissas importantes como a esperada “retomada” pós pandemia, eleições, entre outros fatores. De fato, avançamos nessa agenda e um exemplo disso é podermos falar sobre racismo, sobre feminicídio, sobre LGBTQIAP+Fobia, entre outras formas de violência dentro de espaços que até então a pauta precisava ser trabalhada de forma sutil. Entretanto, ainda precisamos de mais comprometimento, de políticas sustentáveis, duradouras e que vá além do processo de inclusão (desenvolvendo, acolhendo e potencializando talentos até alcançarem espaços de tomadas de decisões).
Nesse sentido, cada ator social pode e deve exercer suas responsabilidades de acordo com a sua própria atuação, de acordo com a sua cadeia de valor e impactos, contribuindo para uma sociedade justa, sustentável e respeitosa. O importante é começar. Os dados demonstram a necessidade e urgência a respeito do tema e por isso, precisamos agir no hoje para que o amanhã possa existir.
É necessário abordar direitos humanos de forma transversal, demonstrando que cada vez mais as agendas estão interligadas. Ao falarmos sobre meio ambiente, transparência, sobre trabalho decente, sobre diversidade, governança, mudança de cultura, ações afirmativas, boas práticas, ainda estamos falando de direitos humanos. Em um país considerado um dos mais desiguais do mundo, todo dia é dia de se colocar enquanto resistência e todos os atores sociais possuem um papel importante a contribuir nesse processo. Em todo o mundo, o Dia Internacional dos Direitos Humanos é celebrado no dia 10 de dezembro, marcando o final de um dos anos mais difíceis para agenda. Esse é o momento de refletir, pensar nos avanços, porque temos motivos para comemorar, mas ainda temos muito caminho para percorrer.
Por: Scarlett Rodrigues da Cunha e Marina Martins Ferro, do Instituto Ethos, em artigo publicado ao jornal Estadão
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