Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas retoma atividades em março após anos na geladeira no governo Dilma; secretário-executivo defende repressão na Amazônia
Alfredo Sirkis nunca foi conhecido por estar do lado dos vencedores na história. Mas seu novo emprego é uma bucha até mesmo para alguém que participou da luta armada, fundou o Partido Verde, foi deputado federal na minguada bancada ambientalista e engajou-se nas campanhas de Marina Silva: Sirkis é o secretário-executivo do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, criado para discutir o tema no governo federal. Entre suas tarefas está a de tentar soprar a agenda de clima no ouvido de ninguém menos que o presidente Michel Temer.
O fórum surgiu em 2000 como um espaço de debate entre governo federal e sociedade civil, presidido pelo Presidente da República . Teve seu período áureo no governo Lula, quando seu então secretário, o físico Luiz Pinguelli Rosa, liderou as discussões que culminaram no Plano Nacional de Mudanças Climáticas, em 2008.
A partir de 2011, sob Dilma Rousseff, o colegiado foi essencialmente jogado às traças. Dilma reuniu-se com o fórum apenas duas vezes em cinco anos – e, na primeira, em 2012, declarou de maneira célebre que energias renováveis eram “fantasia”. “Os processos decisórios passavam totalmente ao largo do fórum”, lembra Sirkis. Mesmo assim, Pinguelli renunciou ao posto em maio de 2016, em protesto contra o impeachment. O fórum ficou seis meses acéfalo – mas pouca gente percebeu.
Aos 66 anos, o jornalista e político carioca, que se diz um filiado “não-praticante” do PSB, assumiu o secretariado do fórum em novembro, num momento dramático para a agenda de combate ao aquecimento global. Após saborear a vitória em 2015 com o Acordo de Paris, o mundo encara uma perspectiva de retrocesso significativo com Donald Trump nos EUA.
No Brasil, não há até o momento nenhuma indicação de que Temer vá dar mais prioridade ao assunto do que sua antecessora. Ao contrário: da Casa Civil, cujo ministro-chefe é investigado por variados crimes ambientais, têm vindo tentativas de torpedear essa agenda, como um sinal verde para a aprovação de um projeto de licenciamento ambiental feito pela bancada ruralista e uma recepção amigável a uma proposta que pode liberar 1 milhão de hectares na Amazônia à grilagem. Todas essas medidas vão na contramão dos compromissos brasileiros de corte de emissões. Há risco de retrocessos na demarcação de terras indígenas (importantes para conter o desmatamento e as emissões) e no Código Florestal.
A principal conquista brasileira no clima, a redução da taxa de desmatamento na Amazônia, também começa a virar abóbora: a devastação cresceu 60% nos últimos dois anos e, segundo dados recentes do Imazon, já é maior no período de agosto de 2016 a janeiro de 2016 do que no mesmo período anterior.
“É preciso declarar guerra ao repique do desmatamento”, afirma Sirkis, ao ser questionado sobre suas prioridades à frente do fórum. As nove câmaras temáticas do colegiado começam a se reunir em março, e o secretário-executivo pretende iniciar os trabalhos com debates sobre florestas. De imediato, ele afirma ser a favor de um aumento nas ações de repressão. “Está claro que há um aproveitamento oportunista da fraqueza do Estado brasileiro, que foi sinalizada pela crise institucional, pela crise nos Estados.”
Para ter qualquer peso, porém, o fórum terá de conquistar a atenção de Temer, com cujo governo Sirkis afirma não ter ligação política. O secretário diz que o presidente garantiu presença na primeira plenária do fórum, que deve acontecer ainda neste semestre.
Leia a seguir a entrevista que Sirkis concedeu ao Observatório do Clima.
Ao longo de toda a história do fórum, sua relevância tem sido dada pelo grau de prioridade que o Presidente da República atribui ao assunto. Como o sr. acha que será com Temer, já que até aqui ele não tem demonstrado atenção à mudança do clima?
O fórum foi criado, em 2000, no governo FHC, e o Fabio Feldmann foi seu secretário-executivo. Reunia-se com frequência, o presidente comparecia com alguns ministros e discutia diretamente conosco. No governo Lula, o fórum teve, mais que relevância, visibilidade, porque em algumas ocasiões o presidente usou-o para fazer anúncios importantes com a Marina e depois o Carlos Minc.
No governo Dilma o fórum teve menos visibilidade e alguns momentos bizarros, como aquele discurso dela descascando em cima das energias limpas. Os processos decisórios passavam totalmente ao largo do fórum, mesmo aqueles que foram conduzidos a bom termo, como o resultou na nossa INDC [Contribuição Nacionalmente Determinada Pretendida, hoje apenas NDC] e que foi bem conduzido, ao final, pela Izabella Teixeira.
Na conversa que tive com o Temer, quando aceitei a indicação, no dia da ratificação [do Acordo de Paris, em 12 de setembro], notei que ele, embora não conhecendo a fundo o assunto, lhe atribuía importância. Tinha acabado de estar no G20 e percebera a centralidade do clima nos discursos dos outros chefes de Estado. Percebi um interesse em conhecer mais, ouvir. Isso é melhor do que tentar interagir com quem já sabia tudo, não é?
O fórum não se reúne com o presidente desde o primeiro mandato de Dilma e ficou acéfalo por quase seis meses. Quais foram os prejuízos decorrentes dessa inatividade?
Perdemos tempo no que é a grande missão do fórum, que é criar as bases para um novo tipo de governança climática mais eficiente e participativa e que siga uma estratégia coerente, um roadmap que nos é dado pelo Acordo de Paris, pela nossa NDC e por certos desafios de adaptação que devemos enfrentar.
Quais são as suas prioridades à frente do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas?
Diferentemente do Fabio e do Pinguelli, que eram politicamente próximos aos presidentes de então (no caso do Pinguelli mais o Lula que a Dilma), não tenho uma ligação “política” com o governo de transição. Hesitei muito em aceitar esse encargo que, aliás, não é um cargo comissionado e não faz parte da estrutura de governo. Meu único vinculo político é com o consenso que permitiu ratificar o Acordo de Paris. Quero envolver o fórum no processo de uma nova governança climática participativa. Para isso temos de começar de baixo para cima, a partir das câmaras temáticas com uma agenda comum a todas e muito clara.
A agenda é: 1) Que ações de curto prazo, como o enfrentamento imediato do repique do desmatamento? 2) Implementação da NDC em cada setor da economia. 3) Primeiro ciclo de revisão da NDC. 4) Estratégia de descarbonização drástica para a segunda metade do século. 5) Questões de adaptação relativas a cada setor. 6) Questões de inovação tecnológica e financiamento da transição para a economia de baixo carbono/carbono neutra.
A primeira plenária será neste semestre ainda, e terá que responder ao primeiro ponto, que são ações de curto prazo, e aí volto a insistir: é preciso declarar guerra ao repique do desmatamento.
De que forma?
A curto prazo tem de ser por meio de operações de repressão. Porque está claro que há um aproveitamento oportunista da fraqueza do Estado brasileiro, tanto na esfera federal quando na estadual, que foi sinalizada pela crise institucional, pela crise nos Estados. A curto prazo tem de haver retomada das operações do Ibama juntamente com a Polícia Federal, se necessário com apoio das Forças Armadas. A médio prazo é evidente que são necessários mecanismos econômicos, sobretudo nas áreas onde existe a possibilidade do desmatamento legal, como o cerrado. Ali tem de haver pagamento por serviços ambientais.
O sr. defenderá desmatamento zero no fórum?
Eu estou lá para fomentar a discussão e apresentar as propostas que sejam consensuadas nas câmaras temáticas. A câmara temática de florestas e agropecuária, terá liderança da Coalizão [Brasil Clima, Florestas e Agricultura]. Teremos um grupo que terá todos os lados do segmento e que vai produzir determinados posicionamentos, que eu vou defender como coordenador do fórum. Agora, eu, pessoalmente, sou favorável. Mas minha posição pessoal não será a que vai necessariamente prevalecer.
O país tem uma governança de clima em tese muito boa, com uma política nacional, um plano nacional, um comitê interministerial chefiado pela Casa Civil. Na prática, porém, o Ministério do Meio Ambiente faz quase tudo sozinho. Fracassou a tentativa de tratar o clima como tema transversal?
No período anterior alguns ministérios se boicotavam mutualmente e disputavam poder entre si. E a parte mais decisiva do governo, a área econômica, passava – e ainda passa – totalmente ao largo da questão climática. A cúpula da Fazenda, do Banco Central, do BNDES, os outros bancos públicos, do planejamento, todos têm que estar profundamente envolvidos com a questão da mudança climática. Não é uma questão meramente “ambiental”: ela é de desenvolvimento, ela é civilizatória.
Há uma guerra de facções no governo em relação ao inventário de emissões do Brasil, feito pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e questionado pelo Meio Ambiente. Como o fórum pode mediar esse conflito?
Antes de assumir o fórum eu já estava tentando fazer esse meio de campo. Antes, eu tinha uma dificuldade no MCTI com o Aldo Rebelo (PCdoB-SP). Embora no passado ele tenha manifestado posições negacionistas climáticas, não tentou imprimir essa orientação e o ministério bancou dois excelentes trabalhos, o 3o Inventário e o Opções de Mitigação, coordenado pelo Prof. Roberto Schaeffer. Houve, no entanto, uma disputa de espaço de Aldo com Izabella e havia também uma questão pessoal entre as duas equipes técnicas do MMA e do MDIC que precisa ser superada, pois ambas são constituídas por técnicos de primeiríssima qualidade. O fórum pode de fato ajudar a superar essas questões, que demandam um mediação sensível, respeitosa e inteligente.
O Brasil tem, pela primeira vez, um plano nacional de adaptação, mas este não dialoga com o Brasil 2040, o principal estudo sobre vulnerabilidade da economia brasileira à mudança do clima. Como incorporar o 2040 ao planejamento de governo e dar dentes ao plano de adaptação?
Teremos um subfórum só para adaptação, incorporando o dever de casa de adaptação setorial de cada uma das câmaras temáticas e fazendo uma síntese de longo prazo. Adaptação abarca uma infinidade de questões, e a maioria delas exige uma concertação com os níveis regional e local. O Brasil 2040 precisa de fato orientar a ação nacional de adaptação.
O sr. é o principal defensor no Brasil da chamada precificação positiva do carbono, que diz ser o único jeito de mobilizar finanças em quantidade suficiente para atingir as metas do Acordo de Paris. É possível falar nisso sem falar em preço de carbono no Brasil?
Penso que as duas modalidades de precificação são necessárias e complementares. A precificação “real”, na qual atribuímos preço à tonelada de carbono para poder taxá-la é, fundamental para que os preços incorporem as externalidades negativas – tanto climáticas quando ambientais locais – dos produtos e serviços. No Brasil a taxação de carbono teria de ser compensada por uma redução análoga de outros tributos. Não podemos aumentar a carga tributária.
Já a precificação positiva do carbono reduzido é uma revolução no mundo econômico na proporção do tamanho do problema que estamos enfrentando. Se a mudança climática é o maior problema contemporâneo porque agrava todos os outros e representa uma ameaça existencial para a espécie humana, isso deve se refletir nos sistema de abstrações sobre qual se constrói a economia.
Se podemos calcular, com uma boa margem de segurança, que “x” trilhões de dólares será o prejuízo infligido à economia mundial pelos efeitos das mudanças climáticas, até, digamos, 2050, podemos também calcular o valor de cada tonelada de carbono reduzida ou removida. O carbono-menos é como o novo ouro.
O fórum pretende discutir tecnologias de emissão negativa, como o bio-CCS com captura de carbono? Qual é sua opinião sobre a adoção disso no Brasil?
Se queremos começar a pensar em 1,5oC, ou mesmo em 2oC, emissões negativas é o nome do jogo. Há muita coisa interessante sendo pesquisada pelo mundo afora e o Brasil precisa desesperadamente superar seus entraves burocráticos, cartoriais e a falta de importância concede à pesquisa e à inovação. O Brasil tem um potencial enorme para diversas modalidades de tecnologias de emissão negativa. Mas só dá tiros no pé.
De que tipo?
Você tem um sistema hipercartorializado e razoavelmente mafioso. Tenho recebido denúncias de pessoas com invenções na área de biocombustíveis e outras coisas que são sistematicamente barradas por verdadeiras máfias cartoriais que existem. Isso é um ponto de estrangulamento terrível para o Brasil, independentemente da questão climática. Na câmara temática de ciência e tecnologia vamos tentar fazer um levantamento de todos os obstáculos que existem no Brasil para um fluxo maior da inovação.
Um dos riscos que vêm sendo apontados com Donald Trump é o de outros países discretamente tirarem o pé do acelerador de seus compromissos no Acordo de Paris, mesmo mantendo no discurso o famoso “tamo junto”. O sr. acha que o Brasil corre esse risco?
Mesmo que os EUA não saiam do Acordo de Paris, vai haver um retrocesso na regulamentação interna de caráter nacional – vários Estados norte-americanos vão resistir – e no apoio que os EUA vinham dando à regulamentação internacional via Convenção do Clima. A via diplomática vai ficar mais difícil por um bom tempo. Isso reforça a noção de que a descarbonização precisa virar um viés da economia global. Penso que tanto a taxação do carbono quando a precificação positiva assumem importância particular nesse momento.
O que aconteceu nos EUA é simplesmente tenebroso, no pior momento possível. Mas é o que é. É o terreno em que teremos de dar combate. O Brasil corre todo os riscos. Somos uma sociedade totalmente esgarçada, numa crise econômica brutal, grande descrédito nas instituições e na própria capacidade da democracia superar essa situação. Mais que o risco de um novo surto autoritário de tipo clássico, vejo o perigo da síndrome dos Estados falidos. Precisamos de causas que nos unam. Enfrentar a crise climática foi até agora a única que logrou essa façanha. A ratificação do Acordo de Paris foi aprovada em tempo recorde nas duas casas legislativas e sancionada pelo presidente. Foi um momento raro de união nacional. Devemos preservar e cultivar isso.
Por Observatório do Clima