O que se questiona é se os mecanismos do mercado contribuem para maior equidade e justiça ou terminam por aprofundar as diferenças da sociedade.

Por Luís Fernando Guedes Pinto*

É crescente a importância de instrumentos de mercado, como a certificação e os pagamentos por serviços ambientais, na cesta de soluções para incentivar mudanças em setores e cadeias produtivas rumo à sustentabilidade. É cada vez mais comum nos setores ligados à produção agropecuária, florestal e de manejo de recursos naturais.

No entanto, apesar do propósito de colaborar para a sustentabilidade, há grandes preocupações quanto à implementação dos instrumentos de mercado: se estariam beneficiando igualmente os diferentes tipos de produtores e partes afetadas pela sua atividade ou se acentuam as desigualdades entre pequenos e grandes produtores ou grandes empreendimentos e as comunidades impactadas por eles.

Resumindo, o que se questiona é se, ou sob quais condições, os mecanismos do mercado conseguem contribuir para uma maior equidade e justiça ou terminam por aprofundar as diferenças da sociedade.

Para tentar responder essas perguntas, realizamos um estudo a fim de avaliar a equidade no sistema de certificação florestal FSC (Forest Stewardship Council ou Conselho de Manejo Florestal).

Inicialmente, é preciso falar um pouco sobre o conceito de equidade, que difere sensivelmente do de igualdade, e de como a justiça é vista dessas duas perspectivas: a justiça sob uma delas é diferente daquela sob a outra.

A igualdade, obviamente, trata todos como iguais. A equidade considera as diferenças, capacidades e pontos de partida de cada um para obter os mesmos direitos. As políticas afirmativas (de gênero, raça ou relacionadas a pessoas com deficiência) estão calçadas no conceito de equidade, visando garantir os mesmos direitos para aqueles que são diferentes. Assim, enquanto a justiça, pela via da igualdade, é cega, pela via da equidade tem os olhos bem abertos. E uma abordagem de equidade nos permite ampliar a análise da justiça a respeito da criação e da implementação de políticas públicas ou privadas.

Para uma avaliação neutra da equidade em mecanismos de mercado, deve-se considerar perguntas como:

  1. Quem participa da definição desses sistemas?
  2. Há equilíbrio entre partes interessadas do Sul e do Norte ou entre grupos de interesse econômicos, sociais e ambientais?
  3. Esses grupos de interesse participam desses sistemas com a mesma capacidade?
  4. Qual é o público-alvo definido ou quem eles pretendem beneficiar?
  5. Que mudanças eles pretendem fomentar? A conservação da natureza, o bem-estar de trabalhadores e comunidades? Em que escala territorial e temporal?
  6. Há mecanismos para proporcionar acesso igual aos diferentes perfis de produtores e empreendedores?
  7. Quais são os mercados de destino desses produtos?
  8. Quais dimensões de equidade que esses mecanismos proporcionam para os seus beneficiários? Maiores possibilidades de diálogos e negociação, garantias de direitos e acesso a serviços básicos, como moradia, saúde e educação, Aumento de suas capacidades ou maior distribuição de benefícios materiais, como renda e infraestrutura?

Para levar essas questões ao mundo real, fizemos uma avaliação abrangente das várias dimensões da equidade em diversas escalas do sistema de certificação florestal FSC, com a análise local apoiada em um estudo de caso no Brasil**. O FSC é o principal sistema de certificação florestal do mundo, com maior tempo de implementação e que tem inspirado a criação de diversos outros, como as mesas-redondas para commodities agrícolas.

Além disso, o FSC tem várias dimensões da equidade como objetivos explícitos, seja na sua governança, em suas políticas ou nos seus padrões de certificação. Pretende transformar florestas de todo o mundo, especialmente as tropicais, com o objetivo de beneficiar as pessoas afetadas por elas e distribuir os benefícios da certificação ao longo das cadeias produtivas florestais.

Contudo, apesar das grandes virtudes do FSC e de podermos confirmar que há vários mecanismos e salvaguardas que visam garantir a equidade no desenvolvimento e aplicação do sistema, concluímos que a sua implementação é desigual no mundo e no Brasil.

Embora a conservação das florestas tropicais e de seus povos tenha sido um dos principais objetivos da fundação do FSC, 20 anos depois mais de 80% das florestas certificadas são temperadas e estão na América do Norte ou na Europa. Menos de 4% delas são manejadas por comunidades e povos indígenas.

No Brasil, as assimetrias se confirmam. Plantações de espécies exóticas (pinus e eucalipto) contam com 57% da área, assim como 90% dos certificados no país são de empresas. Mais da metade do setor de plantações do Brasil e quase 100% do setor de papel e celulose estão certificados, enquanto o FSC só atingiu menos de 5% das florestas nativas no país. E, apesar de as comunidades representarem uma pequena parte dos certificados, esta conquista somente foi possível graças a intensos esforços externos para superar as barreiras de capacidade para se certificar. Políticas públicas e empresariais, ONGs, doadores e um organismo de certificação tiveram um papel fundamental na conquista e manutenção da certificação por esses grupos.

Tudo isso se explica pelas diferenças de capacidade de cada grupo de interesse do setor florestal internacional e brasileiro em participar do desenvolvimento e da implementação do FSC. E essa regra vale para todas as outras iniciativas. Esses processos são dominados por quem tem maior capacidade. Em geral, por organizações dos países desenvolvidos, sejam grupos econômicos ou ambientalistas, seguidos de longe por movimentos sociais e grupos locais, sejam pequenas empresas, ONGs ou grupos de trabalhadores.

* Luís Fernando Guedes Pinto é gerente de certificação do Imaflora e integrante da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais.

** O resumo da pesquisa está disponível em “Equidade e FSC – temas para debate a partir de um estudo de caso no Brasil”. O estudo completo foi publicado na revista científica Forest Policy and Economics e está acessível no site www.sciencedirect.com.

Artigo publicado originalmente pela Folha de S.Paulo, em 4 de julho de 2013.

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Este texto faz parte da série de artigos de especialistas promovida pela área de Gestão Sustentável do Instituto Ethos, cujo objetivo é subsidiar e estimular as boas práticas de gestão.

Veja também:
– A promoção da igualdade racial pelas empresas, de Reinaldo Bulgarelli;
– Relacionamento com partes interessadas, de Regi Magalhães;
– Usar o poder dos negócios para resolver problemas socioambientais, de Ricardo Abramovay;
– As empresas e o combate à corrupção, de Henrique Lian;
– Incorporação dos princípios da responsabilidade social, de Vivian Smith;
– O princípio da transparência no contexto da governança corporativa, de Lélio Lauretti;
– Empresas e comunidades rumo ao futuro, de Cláudio Boechat;
– O capital natural, de Roberto Strumpf;
– Luzes da ribalta: a lenta evolução para a transparência financeira, de Ladislau Dowbor;
– Painel de stakeholders: uma abordagem de engajamento versátil e estruturada, de Antônio Carlos Carneiro de Albuquerque e Cyrille Bellier;
– Como nasce a ética?, de Leonardo Boff;
– As empresas e o desafio do combate ao trabalho escravo, de Juliana Gomes Ramalho Monteiro e Mariana de Castro Abreu;
– Equidade de gênero nas empresas: por uma economia mais inteligente e por direito, de Camila Morsch;
– PL n° 6.826/10 pode alterar cenário de combate à corrupção no Brasil, de Bruno Maeda e Carlos Ayres;
– Engajamento: o caminho para relações do trabalho sustentáveis, de Marcelo Lomelino;
– Sustentabilidade na cadeia de valor, de Cristina Fedato;
– Métodos para integrar a responsabilidade social na gestão, de Jorge Emanuel Reis Cajazeira e José Carlos Barbieri;
– Generosidade: o quarto elemento do triple bottom line, de Rogério Ruschel;
– O que mudou na sustentabilidade das empresas, de Dal Marcondes;
Responsabilidade social empresarial e sustentabilidade para a gestão empresarial, de Fernanda Gabriela Borger;
Os Dez Mandamentos da empresa responsável, de Rogério Ruschel;
O RH como alavanca da estratégia sustentável, de Aileen Ionescu-Somers; e
Marcas globais avançam na gestão de resíduos sólidos, de Ricardo Abramovay.