A que se deve a gritante desproporção entre o total de negros na população e sua presença nos postos de comando no mundo corporativo?           

Por Pedro Jaime*

A edição de novembro de 2013 da revista Você S.A. trouxe uma interessante reportagem sobre a carreira de indivíduos negros no mundo empresarial. “Escalada um pouco menos difícil” é o título da matéria, assinada por Gabriel Ferreira. Nela, o jornalista apresenta aos leitores os fatores que influenciam na construção de uma carreira executiva no mundo corporativo por profissionais negros. O argumento central, já exposto no título, é que os obstáculos à ascensão social dos negros nas empresas são menores hoje do que foram no passado. E as principais razões para isso são sinalizadas logo na chamada: “A promoção da diversidade nas empresas tem aumentado a presença de executivos negros. Mas, para acelerar esse processo, é preciso elevar o acesso dos afrodescendentes ao ensino superior”.

O jornalista recupera os dados do Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas, elaborado pelo Instituto Ethos, para justificar o relativo otimismo. Se hoje apenas 5,3% dos postos de comando das grandes companhias que atuam no país são ocupados por negros (pretos ou pardos, conforme classificação do IBGE), há dez anos apenas 1,8% dos executivos brasileiros no topo da hierarquia corporativa eram negros. E isso num país em que mais da metade da população é formada por esse contingente populacional.

Porém, independentemente desse incremento, a situação atual revela uma desigualdade racial gritante, ainda mais evidente quando comparamos os dados do Brasil com os dos Estados Unidos, país que viveu até os anos 1960 o regime de segregação racial. Lá, aponta Gabriel Ferreira, numa população composta por 12,6% de negros, 9,4% dos executivos das 100 maiores companhias são afrodescendentes, segundo dados de The Executive Leadership Council. No Brasil, o último Censo do IBGE, realizado em 2010, revelou que 50,7% da população brasileira é composta por negros (7,6% de pretos e 43,1% de pardos). Levando-se em conta essa realidade, para termos uma representação de negros no mundo empresarial mais próxima daquela encontrada nos EUA, que já é desigual, deveríamos contar com 37,8% de afrodescendentes nos postos direção das empresas que operam no país, um percentual sete vezes superior aos atuais 5,3%.

E quais as razões para essa gritante desproporção entre a existência de pretos e pardos na população brasileira e a sua presença nos postos de maior poder, prestígio e remuneração no mundo corporativo? Para responder a essa questão com certo otimismo, o autor da reportagem veiculada em Você S.A. faz referência a uma série de mudanças que vêm se processando na sociedade brasileira: do maior acesso à educação superior por parte dos afrodescendentes a uma nova postura das companhias quando o assunto é diversidade. Tais transformações, sugere Gabriel Ferreira, tornam menos difícil a ascensão profissional dos negros que estão entrando agora no mercado de trabalho. Aquele que iniciou seu percurso profissional algumas décadas atrás vivenciou um momento em que o ingresso no ensino superior era bem menos acessível e as empresas não revelavam uma preocupação com a composição diversa do seu quadro pessoal. Ele teve que contar então com outros dispositivos, como ter um padrinho que acreditasse em seu potencial e decidisse investir nele ou ser o escolhido entre os membros de uma família numerosa como aquele que, na opinião dos pais, deveria ser objeto de maiores investimentos, em razão do seu potencial. Assim, conseguiria passar no filtro das empresas, que costumam selecionar profissionais egressos das melhores faculdades do país e com um segundo idioma.

Conforme afirmado anteriormente, para Gabriel Ferreira o cenário atual é mais favorável. Na última década, aponta ele, “com a difusão das práticas de responsabilidade social, o tema da inclusão dos negros ganhou relevância nas empresas”. As companhias têm criado comitês que discutem metas, ações e prazos para aumentar a diversidade das suas equipes de trabalho. O exemplo do Banco Itaú, que desenvolveu um programa de estágio específico para jovens afrodescendentes, é mencionado. “Hoje, 23% dos 3.500 estagiários da empresa são negros”, aponta.

Ferreira adverte, porém, que as políticas de inclusão das empresas não são capazes de reverter, sozinhas, obstáculos exteriores ao ambiente corporativo. Isso porque, no Brasil “um dos principais entraves à ascensão dos negros é sua baixa qualificação decorrente da concentração dessa população nas classes mais baixas”. Esse quadro estaria começando a mudar com o avanço das ações afirmativas, como as cotas raciais nas universidades públicas. Uma das fontes entrevistadas para a reportagem corrobora essa perspectiva. “Temos de investir em educação para combater o preconceito”, diz Ana Paula Azevedo, da consultoria de RH Garcia Azevedo, de São Paulo.

Em síntese: para Gabriel Ferreira, juntas as iniciativas de diversidade das empresas e as políticas de ação afirmativa implementadas pelo Estado na área de educação seriam as responsáveis pelo aumento da presença de executivos negros no mundo corporativo.

A questão me parece mais complexa. É verdade que as ações afirmativas em benefício da população negra, especialmente as cotas para o ingresso no ensino superior, aliadas a políticas públicas como o Programa Universidade para Todos (Prouni), ampliou o acesso dos negros à educação e consequentemente criou um cenário mais favorável à construção de carreiras “bem-sucedidas” no mundo empresarial por esse contingente populacional. É verdade também que as iniciativas de diversidade das empresas podem ajudar a reduzir obstáculos colocados pelo racismo à trajetória profissional de afrodescendentes. Porém, na “equação” que liga ações afirmativas, gestão da diversidade e trajetórias profissionais de executivos negros, há mais uma “variável” cujo peso o autor da reportagem de Você S.A. anuncia logo no início do seu texto, mas cujo “valor” termina por não “calcular”. “Na pauta da greve que parou os bancos no mês passado, ao lado do pedido de reajuste salarial, uma das reivindicações dos sindicatos dos bancários chamava a atenção: o preenchimento de pelo menos 20% das vagas por colaboradores negros”, sinaliza ele. E acrescenta: “Foi a primeira vez que a promoção da diversidade racial foi incluída nas bandeiras da categoria”.

Com essa informação, ele ilumina um elemento constitutivo do campo econômico e da dinâmica empresarial: a pressão dos movimentos sociais sobre as empresas. E no que se refere à questão racial essa tensão não é exercida apenas pelos sindicatos. O movimento negro tem sido um ator importante nesse jogo sociopolítico. Ao menos desde os anos 1990 ele vem acumulando forças e pressionando o Estado pela adoção de políticas de ação afirmativa voltadas para a população negra, inclusive na esfera do trabalho.

Nesse sentido, vale destacar que as primeiras versões do Estatuto da Igualdade Racial, aprovado pelo Senado Federal em 2010, previam cotas para contratação de negros pelas empresas, por meio de incentivos fiscais que lhes seriam oferecidos. Esta foi uma medida adotada nos EUA quando, em razão das reivindicações dos movimentos pelos direitos civis, as affirmative actions foram lançadas nos anos 1970, após a derrocada do regime de segregação racial, o que fez elevar a participação de afro-americanos no mundo corporativo do país, ao ponto de chegarem ao patamar aludido anteriormente. No caso do Brasil, embora essa cláusula do Estatuto da Igualdade Racial não tenha sido mantida no texto final, a questão continua sendo debatida pelos parlamentares em outras comissões.

Ademais, a pressão do movimento negro não se dirigiu às empresas apenas indiretamente, posto que mediada por reivindicações feitas ao Estado. Tal movimento começou a tensionar diretamente as empresas para que assumissem parte da responsabilidade pela eliminação das desigualdades raciais. As manifestações realizadas pelo Educafro em frente a agências bancárias ou no interior de shoppings centers com o intuito de denunciar a baixa presença de negros nesses estabelecimentos são um exemplo.

Mas há um caso paradigmático nesse sentido. Em 2003, uma rede de ONGs provenientes do movimento negro, lideradas pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental, remeteu uma representação ao Ministério Público do Trabalho (MPT) denunciando a desigualdade racial presente nas empresas desse segmento. No mesmo ano, o MPT instaurou inquéritos civis públicos nos cinco maiores bancos que na época operavam no Brasil. Diante dos resultados, propôs a essas empresas o estabelecimento de um Termo de Ajustamento de Conduta. Tendo em vista a recusa, decidiu então ajuizar ações civis públicas contra elas na Justiça Trabalhista. As ações foram julgadas improcedentes pelos magistrados, mas causaram repercussão na mídia.

No ano seguinte, aconteceram audiências públicas e reuniões na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, à época presidida não pelo pastor Marcos Feliciano, mas pelo deputado Luiz Eduardo Greenhalgh e tendo em sua composição o deputado Luiz Alberto, então presidente da Frente Parlamentar pela Igualdade Racial. Na ocasião, a Federação Brasileira de Bancos foi convidada a negociar com representantes de entidades sindicais e do movimento negro. Na esteira desses acontecimentos, em 2006, em parceria com a Unipalmares, diversos bancos implementaram programas de trainees voltados para jovens negros. Não por acaso, o exemplo de iniciativa de inclusão de negros nas empresas citado por Gabriel Ferreira se refere ao programa de estágio específico para jovens afrodescendentes do Banco Itaú.

Fica evidente então que as reivindicações dos movimentos antirracistas constituem um dos fatores (certamente não o único, uma vez que a realidade social é multideterminada, mas que é bastante significativo) que explicam por que a escalada dos afrodescendentes aos postos executivos das empresas tem sido um pouco menos difícil.

* Pedro Jaime é autor da tese Executivos Negros: Racismo e Diversidade no Mundo Empresarial – Uma Abordagem Socioantropológica, que recebeu o prêmio Tese Destaque USP em 2013, na área de Ciências Humanas.

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Este texto faz parte da série de artigos de especialistas promovida pela área de Gestão Sustentável do Instituto Ethos, cujo objetivo é subsidiar e estimular as boas práticas de gestão.

Veja também:
– A promoção da igualdade racial pelas empresas, de Reinaldo Bulgarelli;
– Relacionamento com partes interessadas, de Regi Magalhães;
– Usar o poder dos negócios para resolver problemas socioambientais, de Ricardo Abramovay;
– As empresas e o combate à corrupção, de Henrique Lian;
– Incorporação dos princípios da responsabilidade social, de Vivian Smith;
– O princípio da transparência no contexto da governança corporativa, de Lélio Lauretti;
– Empresas e comunidades rumo ao futuro, de Cláudio Boechat;
– O capital natural, de Roberto Strumpf;
– Luzes da ribalta: a lenta evolução para a transparência financeira, de Ladislau Dowbor;
– Painel de stakeholders: uma abordagem de engajamento versátil e estruturada, de Antônio Carlos Carneiro de Albuquerque e Cyrille Bellier;
– Como nasce a ética?, de Leonardo Boff;
– As empresas e o desafio do combate ao trabalho escravo, de Juliana Gomes Ramalho Monteiro e Mariana de Castro Abreu;
– Equidade de gênero nas empresas: por uma economia mais inteligente e por direito, de Camila Morsch;
– PL n° 6.826/10 pode alterar cenário de combate à corrupção no Brasil, de Bruno Maeda e Carlos Ayres;
– Engajamento: o caminho para relações do trabalho sustentáveis, de Marcelo Lomelino;
– Sustentabilidade na cadeia de valor, de Cristina Fedato;
– Métodos para integrar a responsabilidade social na gestão, de Jorge Emanuel Reis Cajazeira e José Carlos Barbieri;
– Generosidade: o quarto elemento do triple bottom line, de Rogério Ruschel;
– O que mudou na sustentabilidade das empresas, de Dal Marcondes;
– Responsabilidade social empresarial e sustentabilidade para a gestão empresarial, de Fernanda Gabriela Borger;
– Os Dez Mandamentos da empresa responsável, de Rogério Ruschel;
– O RH como alavanca da estratégia sustentável, de Aileen Ionescu-Somers;
– Marcas globais avançam na gestão de resíduos sólidos, de Ricardo Abramovay;
– Inclusão e diversidade, de Reinaldo Bulgarelli;
– Da visão de risco para a de oportunidade, de Ricardo Voltolini;
– Medindo o bem-estar das pessoas, de Marina Grossi;
– A quantas andam os Objetivos do Milênio, de Regina Scharf;
– Igualdade de gênero: realidade ou miragem?, de Regina Madalozzo e Luis Cirihal;
– Interiorização do Desenvolvimento: IDH Municipal 2013, de Ladislau Dowbor;
– Racismo ambiental: derivação de um problema histórico, de Nelson Inocêncio;
Procuram-se líderes da sustentabilidade, de Marina Grossi e Marcos Bicudo;
Relato integrado: evolução da comunicação de resultados, de Álvaro Almeida;
A persistência das desigualdades raciais no mundo empresarial, de Pedro Jaime;
A agropecuária e as emissões de gases de efeito estufa, de Marina Piatto, Maurício Voivodic e Luís Fernando Guedes Pinto;
Gestão de impactos sociais nos empreendimentos: riscos e oportunidades, de Fábio Risério, Sérgio Avelar e Viviane Freitas; e
Micro e pequenas empresas mais sustentáveis. É possível?, de Marcus Nakagawa.