Debate permeou atuação de empresas que contratam e fornecem esse serviço
No dia 19 de novembro, o Instituto Ethos e a Comissão Arns promoveram uma oficina estratégica com o objetivo de debater as principais questões de direitos humanos relacionados à segurança privada.
O intuito do debate entre atores-chave nessa pauta era propor a construção de parâmetros de atuação para empresas que fornecem e contratam serviços de segurança privada, além de qualificar a discussão que está em trâmite no Congresso Nacional sobre o Estatuto de Segurança Privada e Instituições Financeiras.
Durante o encontro, que aconteceu na sede do Ethos, Caio Magri, diretor-presidente do Instituto, trouxe a perspectiva da promoção de mudança de cultura, reforçando a importância de um grupo como esse e a necessidade de atuar em conjunto com empresas, organizações e outros atores engajados na agenda. “Esse workshop é um espaço em que é possível pensar sobre o tema, de maneira que possamos construir estratégias e ações para atuar nesse cenário complexo”, pontuou ele.
Luiz Bresser, da Comissão Arns, ressaltou a importância de estudarmos e discutirmos sobre o estatuto da segurança privada e instituições financeiras e reforçou a necessidade de atuação no processo de autorregulação, que deve ser feito por parte das empresas que utilizam e fornecem esse serviço. “Em paralelo ao processo desse projeto, a Comissão Arns está trabalhando em um documento contendo as mudanças que consideramos essenciais para que esse projeto seja um marco positivo na agenda. Isso, respeitando e entendendo a diversidade vista nas realidades das empresas, em que umas necessitam de mais apoio do que outras, por exemplo”, complementa Luiz.
Nesse sentido, é muito importante trabalhar em rede, conforme afirmou Paulo Vannuchi, também da Comissão Arns, ao explicar que a atuação da Comissão traz uma perspectiva de mitigar e de exigir providências. “A Comissão decidiu que a preocupação e forma de atuação será propositiva, de forma a existir um diálogo com qualidade e permanente, especialmente com as empresas. Isso porque a agenda de Direitos Humanos é feita de defender e promover ações”, comentou Paulo.
O contexto da discussão acerca da segurança privada também passa pela necessidade em “ressignificar o perfil do bandido”, conforme levantou Cida Bento, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Cida ressaltou que é necessário fazer as pessoas refletirem sobre conceitos como o de bandido ser apenas negro e de que “bandido bom é bandido morto”. Cida reforçou que “é importante abordar esses conceitos, rompendo esses grilhões”, além de “ter uma atenção a apologia à violência, ao racismo, à homofobia que existe hoje no país, então é preciso ter um trabalho diretivo nessa linha.”
Do ponto de vista legal, Maíra Zapater, professora de pós-graduação da FGV, realizou uma apresentação sobre o uso da força e seus limites na legislação penal brasileira durante a reunião. Maíra explicou que não podemos falar que há uma crise com relação a atuação da polícia ou da segurança privada no Brasil porque essas instituições são recentes na nossa sociedade e ainda estão em “fase de teste”: “Ainda tem muita coisa a ser consolidada, pensada e discutida, porque é uma pauta recente”, pontuou ela.
Com o processo de redemocratização e promulgação da Constituição Federal, vieram os direitos individuais fundamentais, como o direito à segurança, conforme explicou Maíra. Dessa forma, a segurança passa a ser um direito fundamental e implica que o Estado permita que esse direito seja amplamente exercido. No entanto, não existe na Constituição, nada que estabeleça parâmetros explícitos sobre segurança privada, o que permite que seja uma atividade economicamente explorada.
Nesse sentido, Maíra propõe uma reflexão: “Se, com relação a polícia, que existe há 150 anos, ainda não conseguimos chegar numa definição de atuação, imagine da segurança privada que é ainda mais recente?”
Maíra ainda explana sobre o uso da força, que está ligado a atuação tanto da polícia como da segurança privada e explica que não existe um conceito legal para o uso da força. O que existe, conta Maíra, é “uma previsão de exclusão de ilicitude (no artigo 23 do Código penal), em que não há crime quando o agente pratica o fato por estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal (no exercício regular de direito). Mas, todo direito tem um limite e os excessos precisam ser respondidos criminalmente.”
A professora também fala sobre como o uso da força e os atos de defesa podem ser exercidos pelo cidadão, pelo policial e pelo profissional de segurança privada: “Todos podem usufruir do uso da força, mas o cidadão deve usá-la observando os limites legais. Para a segurança privada, o/a profissional pode se defender ou defender o patrimônio do cliente e para o policial, é o dever do/a profissional fazer o uso da força no cumprimento de dever. Mas até que ponto a função pode ser exercida?”
Nesse ponto, é necessário entender e debater a relação entre a segurança privada e os direitos humanos e, para isso, a Comissão Arns apresentou e destacou alguns dados sobre casos de violência no Brasil dentro desse contexto.
Casos destacados na mídia
Foi apresentado que na mídia brasileira existe um histórico de casos graves de violência cometidos por profissionais da segurança privada no país. Dentre esses casos que foram a mídia estão registradas 34 ocorrências e 59 vítimas. Mas, esse é um número incipiente e muito menor do que o real, tendo em vista os casos que não foram divulgados ou nem mesmo foram registrados.
Em sua maioria, os casos divulgados são de injúria racial, lesão corporal e assassinato e o perfil das vítimas não era definido nas notícias, mas, com base nos dados levantados pela Comissão Arns, sabe-se que 44% delas são homens jovens, 10% adolescentes, 7% crianças (menores de 12 anos) e 5% de mulheres e mulheres negras.
Entre os casos de violência cometida por agentes de segurança privada no Brasil, injúria racial representa 17% das ocorrências (sem contar os casos em que houve injúria e lesão corporal junto), lesão corporal representa 44% e assassinatos representam 40%.
Outro dado que chama atenção é o fato das ocorrências de crimes por segurança privada em São Paulo (no período entre janeiro/2009 e setembro/2010) ter o maior número de boletins de violências cometidas por profissionais irregulares, ou seja, que não poderiam exercer a profissão, somando 6.226 casos.
Nesse contexto, foi destacada a necessidade de uma revisão no marco regulatório com relação a questões que tratam de Direitos Humanos, além de tornar clara e documentada a diferença de atuação entre a polícia e a segurança privada. Segundo a Comissão Arns, é necessário disciplinar a segurança privada, regulamentando a profissão e estipulando regras para as empresas que fornecem esse serviço.
Assim, é preciso que as empresas se coloquem como protagonistas nesse cenário para tomar atitudes propositivas e compartilhem suas experiências. Nesse sentido, os participantes da reunião expuseram suas vivências nessa temática e trouxeram exemplos de como estão aprendendo a lidar com esses problemas no cotidiano, quais os mecanismos e procedimentos adequados estão sendo utilizados e como otimizar a atuação dos profissionais de segurança privada.
Próximos passos
Além da discussão, o workshop propôs alguns encaminhamentos, além de começar a desenhar ações futuras. Entre encaminhamentos e ações estão, por exemplo: mapear cursos/qualificações que tratam de Direitos Humanos e que podem ser aplicadas ao contexto de segurança privada; mapear políticas e práticas das empresas que fornecem esse serviço no Brasil; incorporar conceitos de Direitos Humanos nos contratos e protocolos das empresas contratadas; regulamentar a profissão, usar os instrumentos legais existentes para esclarecer os conceitos e mitigar os gargalos dessa questão; prevenir, orientar e formar os profissionais; mapear os riscos que envolvem o uso da força e da existência da segurança privada; elaborar um acordo setorial para mitigar, prevenir e reduzir riscos; elaborar medidas de políticas públicas; mapear atores que podem somar esforços e agregar nesse processo de construção de ações; levantar boas práticas; considerar a regionalidade das empresas; atuar no processo de conscientização, debate e formações; pensar no processo de autorregulamentação; realizar estratégias de advocacy (para as empresas envolvidas) entre seus pares para ampliar a discussão; discutir o uso e porte das armas letais.
Com isso, a realização do workshop foi um passo dado para engajar as empresas não só na discussão, como também na construção e materialização de ações relacionadas à segurança privada no Brasil.
Em 2020, a discussão será ampliada e o objetivo é ter cada vez mais empresas participando da iniciativa, qualificando ainda mais a discussão e as proposições dentro do contexto da segurança privada no Brasil.
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