É inegável que presenciamos uma “era do lixo”, na qual a geração de descartes tem induzido a ocupação total do planeta pelos resíduos.
Por Maurício Waldman
Poucos temas expressam de modo tão emblemático os dilemas da civilização moderna quanto o lixo. Desdobramento direto da pulsão consumista e de concepções negadoras da natureza, o tema se articula funcionalmente com uma série de impactos ambientais, todos sem precedentes na história da humanidade.
Sabe-se que os dinamismos do meio natural – ventos, marés, vulcanismo, entre outros – movimentam 50 bilhões de toneladas de materiais por ano. Já as atividades humanas são responsáveis pelo deslocamento de 48 bilhões de toneladas de materiais por ano, das quais cerca de 30 bilhões são transformadas em lixo.
Portanto, é impossível imaginar que o planeta possa permanecer incólume com praticamente uma “natureza” adicional agindo no mesmo espaço e ao mesmo tempo. É inegável que presenciamos uma “era do lixo”, na qual a geração de descartes está paulatinamente induzindo a ocupação total da Terra pelos resíduos.
Desse modo, a necessidade de não só deter o avanço do lixo como igualmente fazê-lo retroagir se impõe de forma categórica. Nesse particular, seria oportuno afiançar o “estado da arte” dos resíduos brasileiros e o desempenho dos agentes econômicos enquanto protagonistas na efetivação de boas políticas de gestão do lixo.
Contrariando difuso senso comum que criminaliza a priori as nações afluentes como responsáveis por excelência pelos agravos ambientais, observe-se que a situação do Brasil ensejaria vários reparos. Embora a população brasileira corresponda a pouco mais de 3% da humanidade e 3,5% do PIB mundial, o Brasil desova cerca de 5,5% dos refugos planetários.That is to say: estamos descartando bem mais do que sugeriria o perfil demográfico e econômico do país.
Sublinhe-se que a metrópole paulista é o terceiro polo gerador de rebotalhos em nível global, atrás apenas de Nova York e Tóquio. Entretanto, é o 13º PIB urbano. Ou seja, a conurbação gera mais lixo que Berlim, Londres e Paris, urbes contempladas com status de riqueza urbana bem mais encorpado.
É também importante frisar que o apelo para assegurar modelos eficientes de gestão dos resíduos não deixou de repercutir no pensamento gerencial. Um marco matricial a expressar esse propósito foi o surgimento do Compromisso Empresarial para a Reciclagem (Cempre).
Fundada na cidade de São Paulo por 14 empresas privadas, em março de 1992, a instituição constituiu-se no principal fórum multissetorial do gênero no país. Centrada em promover o conceito de gerenciamento integrado do resíduo sólido municipal, incentivar a reciclagem pós-consumo e difundir a educação ambiental com foco na teoria dos três “R” (reduzir, reutilizar e reciclar), trata-se, seguramente, de ator de primeira grandeza no esforço em redirecionar os processos de ejeção de bens descartados.
O reaproveitamento do que anteriormente era estigmatizado como resto inservível tem demonstrado incisivo vigor econômico: o setor cresce dois dígitos por ano. Evidência que não tem como ser desmentida, a reciclagem passou a integrar o cotidiano urbano em muitos pontos do país.
Atualmente, 14% dos resíduos gerados no Brasil são recuperados. E mais: sem contar os trabalhadores do parque industrial reciclador e segmentos direta ou indiretamente consorciados ao trabalho de recuperação de materiais, a literatura especializada contabiliza 1 milhão de catadores operando em todo território nacional e colaborando para preservar o ambiente urbano e impedir o desperdício de valiosas matérias-primas.
Essa mudança é respaldada, no plano da economia dos materiais, por noções como sustentabilidade, ecodesign, ecoeficiência, análise do ciclo de vida dos produtos (life cycle assessment) e tripé da sustentabilidade (triple bottom line). Tais conceitos tornaram-se crescentemente indissociáveis do jargão do universo empresarial, notabilizando-se nos circuitos industriais de ponta como uma ferramenta vital para a implantação de uma produção ecoeficiente e de uma gestão diferenciada dos resíduos sólidos.
Tendo por meta a minimização dos impactos, a otimização do uso dos insumos e a diminuição da geração de rejeitos, essas metodologias têm cumprido função exemplar no periciamento do uso de matérias primas, contribuindo para ampliar a vida útil dos materiais e diminuindo a geração de lixo.
Enquanto estratégia de gerenciamento dos circuitos produtivos, tais conceituações embasam, junto ao mundo corporativo, o inter-relacionamento das esferas do social, do econômico e do ambiental com os princípios gerais da sustentabilidade, que são o seu cerne, todos com notória impactação positiva no tocante a um gerenciamento ótimo dos rejeitos.
Suscitando mudanças comportamentais no quadro funcional e no plano de vida pessoal dos participantes, iniciativas calcadas na transformação de atitudes projetam, simultaneamente, a força do elemento motivacional como matriz das políticas de sustentabilidade corporativa. Entretanto, diante das incompletudes do monitoramento do lixo, os avanços apontados também sinalizam que ainda há muito a ser feito, razão pela qual alinharíamos três considerações essenciais.
A primeira estaria endereçada aos modelos teóricos que comumente transitam na esfera das ideias. Uma ponderação axial diria respeito à recidiva tendência em trabalhar as variáveis ambientais de forma isolada e desarticuladas entre si, dando azo a leituras esquemáticas, simplistas e lineares e abrindo brecha para que estratagemas como as da maquiagem verde (greenwashing) ganhem ânimo e difusão.
Em contraposição a essa tendência, é necessário enfatizar que o lixo sustenta articulação concreta com ampla coleção de apensos, interpondo problemáticas que solicitam visão de conjunto. Isso implica priorizar metodologias interdisciplinares e transtemáticas, como aquelas voltadas para cartografar os engates objetivos que atam conceitualmente o debate dos resíduos sólidos aos recursos hídricos e à matriz energética, assim como referendar a filiação do lixo à materialidade social, isto é, substantivando um processo e não meramente um resultado.
No plano institucional, é fato que nem sempre as respostas do poder público têm evidenciado a proficiência necessária para minimizar as interfaces mais dramáticas da ejeção dos rejeitos. Planilhas oficiais informam que apenas 2,5% dos municípios brasileiros mantêm parceria com associações e cooperativas de catadores. Mesmo nas ações de planejamento, o Estado não tem cumprido o que seria sua função obrigatória. Em 2012, ao final do prazo estabelecido para a confecção dos planos de gestão de resíduos, menos de 10% das municipalidades haviam cumprido sua “lição de casa”.
A própria reciclagem, embora embalando uma escalada de êxitos, tem muito chão pela frente. Nações como Alemanha, Bélgica, Suécia, Irlanda, Países Baixos e EUA reciclam, respectivamente, 48%, 35%, 35%, 32%, 32% e 31%. Esses números, confrontados com o índice nacional, de 14%, falam por si o quanto a parceria das administrações com os catadores e os empresários deve avançar na senda de uma gestão sustentável do lixo.
O que terminamos de elencar são as dificuldades, não o estado de espírito. Disse certa vez o ambientalista Paul Hawken: “Não se deixem dissuadir por pessoas que não sabem o que não é possível. Façam o que precisa ser feito, e verifiquem se era impossível exclusivamente depois que tiverem terminado”. É exatamente essa a prédica que move os que investem na sustentabilidade. É esse o clamor de uma gestão de excelência do lixo.
* Maurício Waldman é pesquisador da área de resíduos sólidos e autor de Lixo: Cenários e Deságios (Cortez Editora, 2010), obra finalista do Prêmio Jabuti de 2011 como melhor livro de ciências naturais.
Artigo publicado originalmente na edição comemorativa de 20 anos da revista Ideia Sustentável, de setembro de 2013.
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Este texto faz parte da série de artigos de especialistas promovida pelo Instituto Ethos com o objetivo de subsidiar e estimular as boas práticas de gestão.
Veja também:
– A promoção da igualdade racial pelas empresas, de Reinaldo Bulgarelli;
– Relacionamento com partes interessadas, de Regi Magalhães;
– Usar o poder dos negócios para resolver problemas socioambientais, de Ricardo Abramovay;
– As empresas e o combate à corrupção, de Henrique Lian;
– Incorporação dos princípios da responsabilidade social, de Vivian Smith;
– O princípio da transparência no contexto da governança corporativa, de Lélio Lauretti;
– Empresas e comunidades rumo ao futuro, de Cláudio Boechat;
– O capital natural, de Roberto Strumpf;
– Luzes da ribalta: a lenta evolução para a transparência financeira, de Ladislau Dowbor;
– Painel de stakeholders: uma abordagem de engajamento versátil e estruturada, de Antônio Carlos Carneiro de Albuquerque e Cyrille Bellier;
– Como nasce a ética?, de Leonardo Boff;
– As empresas e o desafio do combate ao trabalho escravo, de Juliana Gomes Ramalho Monteiro e Mariana de Castro Abreu;
– Equidade de gênero nas empresas: por uma economia mais inteligente e por direito, de Camila Morsch;
– PL n° 6.826/10 pode alterar cenário de combate à corrupção no Brasil, de Bruno Maeda e Carlos Ayres;
– Engajamento: o caminho para relações do trabalho sustentáveis, de Marcelo Lomelino;
– Sustentabilidade na cadeia de valor, de Cristina Fedato;
– Métodos para integrar a responsabilidade social na gestão, de Jorge Emanuel Reis Cajazeira e José Carlos Barbieri;
– Generosidade: o quarto elemento do triple bottom line, de Rogério Ruschel;
– O que mudou na sustentabilidade das empresas, de Dal Marcondes;
– Responsabilidade social empresarial e sustentabilidade para a gestão empresarial, de Fernanda Gabriela Borger;
– Os Dez Mandamentos da empresa responsável, de Rogério Ruschel;
– O RH como alavanca da estratégia sustentável, de Aileen Ionescu-Somers;
– Marcas globais avançam na gestão de resíduos sólidos, de Ricardo Abramovay;
– Inclusão e diversidade, de Reinaldo Bulgarelli;
– Da visão de risco para a de oportunidade, de Ricardo Voltolini;
– Medindo o bem-estar das pessoas, de Marina Grossi;
– A quantas andam os Objetivos do Milênio, de Regina Scharf;
– Igualdade de gênero: realidade ou miragem?, de Regina Madalozzo e Luis Cirihal;
– Interiorização do Desenvolvimento: IDH Municipal 2013, de Ladislau Dowbor;
– Racismo ambiental: derivação de um problema histórico, de Nelson Inocêncio;
– Procuram-se líderes da sustentabilidade, de Marina Grossi e Marcos Bicudo;
– Relato integrado: evolução da comunicação de resultados, de Álvaro Almeida;
– A persistência das desigualdades raciais no mundo empresarial, de Pedro Jaime;
– A agropecuária e as emissões de gases de efeito estufa, de Marina Piatto, Maurício Voivodic e Luís Fernando Guedes Pinto;
– Gestão de impactos sociais nos empreendimentos: riscos e oportunidades, de Fábio Risério, Sérgio Avelar e Viviane Freitas;
– Micro e pequenas empresas mais sustentáveis. É possível?, de Marcus Nakagawa; e
– Executivos negros e movimento antirracista no Brasil, de Pedro Jaime.