Lançado um produto, quem é responsável por seus efeitos indesejáveis posteriores ao consumo? É ambígua a forma como a PNRS responde a isso.

Por Ricardo Abramoway*

Quem deve pagar os custos da coleta seletiva domiciliar? Uma vez lançado um produto no mercado, quem responde por seus efeitos indesejáveis e posteriores a seu consumo?

É ambígua a maneira como a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS – Lei 12.305, aprovada em 2010 após 20 anos de discussão no Congresso) responde a essa pergunta.

Nesta ambiguidade, reside a explicação fundamental para a distância entre a ambição transformadora embutida na PNRS e a desoladora lentidão com que ela vem sendo levada à prática. Do que se trata?

O tema é tratado na seção 2 da PNRS, cujo título é “Da Responsabilidade Compartilhada”. O termo parece evidente por si só e sugere que todos (consumidores, poderes públicos, fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes, catadores de resíduos e recicladores) devem participar de um sistema cuja complexidade dificilmente poderia ser maior.

Após definir os objetivos da responsabilidade compartilhada, as obrigações dos fabricantes e os princípios que devem reger a embalagem dos produtos, a lei aborda seu item mais importante e cuja aplicação prática pode promover mudança decisiva no próprio ciclo de vida dos bens e serviços consumidos pela população: a logística reversa.

A lei a define como “instrumento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada”.

As empresas não são apenas responsáveis pelas consequências socioambientais de seus processos produtivos nem somente pela qualidade do que oferecem aos consumidores. O destino dos materiais que tornaram possível a oferta dos bens e serviços consumidos é igualmente responsabilidade de quem os produziu, importou, distribuiu ou vendeu. É a responsabilidade pós-consumo.

Nesse ponto, a PNRS estabelece uma distinção: embalagens de agrotóxicos, pneus, baterias, óleos lubrificantes, produtos eletroeletrônicos, pilhas e alguns tipos de lâmpadas são setores em que os fabricantes são obrigados a organizar e pagar pela logística reversa, independentemente do serviço público de limpeza urbana.

Podem ser feitos acordos e o poder público monitora este sistema. Mas quem o organiza e paga por ele é o fabricante (ou o importador), coordenado com outros atores da cadeia de valor.

Esse sistema já está em funcionamento e apresenta resultados muito positivos (mesmo que nacionalmente ainda desiguais) no setor de pneus, óleos lubrificantes e embalagens de agrotóxicos. Um fator importante que auxilia na viabilização da logística reversa nessa área é que o descarte dos produtos é feito, em princípio, num local conhecido e onde a cadeia da logística reversa pode interferir: óleos lubrificantes e suas embalagens são descartados em estações de serviços; pneus, em borracharias. A dispersão desses locais é, obviamente, menor do que a dispersão dos domicílios. Quanto às embalagens de agrotóxicos, foi feito um trabalho imenso para que os agricultores as encaminhassem a pontos controlados de coleta e interrompessem o hábito de queimá-las, enterrá-las ou lançá-las nos cursos d’água.

Em cada um desses casos, mesmo que a logística reversa se apoie num conjunto variado de atores, sua organização e seus custos são assumidos por aqueles que vendem os produtos. A literatura internacional sobre o tema dá a este procedimento o nome de responsabilidade ampliada ou alargada do produtor (extended producer responsibility).

Mas essa clara definição não se aplica imediatamente às demais embalagens, que, segundo a PNRS, serão objeto de um acordo setorial a ser estabelecido entre as empresas e o governo.

Não há dúvida de que a complexidade da logística reversa que envolve garrafas PET, latas de cerveja e refrigerantes, papéis e papelão é muito maior do que a dos produtos cujo descarte faz-se, necessariamente em pontos conhecidos e com certo grau de centralização.

Mas hoje a responsabilidade de produtores, importadores, distribuidores e comerciantes sobre o destino dessas embalagens não está claramente definida e, na prática, é quase nula. Ou esses produtos acabam por entupir ainda mais os lixões e os aterros controlados ou então são recolhidos por organizações de catadores, cujo reconhecimento econômico fica muito aquém do serviço que prestam à vida social.

Contrariamente ao que ocorre com pneus, baterias, agrotóxicos e óleos lubrificantes, no setor de embalagens não é o fabricante quem paga pelo serviço de coleta e organização da logística reversa; é o contribuinte, ou seja, o orçamento das prefeituras. E é óbvio que, se a coleta seletiva domiciliar de embalagens depender do orçamento das prefeituras, as chances de seu sucesso serão mínimas.

Existem 47 países que aplicaram ao setor de embalagens o princípio da responsabilidade ampliada do produtor, segundo o indispensável relatório recente da organização norte-americana As You Sow. A ausência da responsabilidade ampliada do produtor na lei norte-americana fez dos Estados Unidos o país com menor taxa de reciclagem entre as nações desenvolvidas.

Felizmente, essa situação pode ser revertida e se trata de uma excelente notícia para o Brasil: a Coca-Cola e a Nestlé Waters declararam sua adesão ao princípio da responsabilidade ampliada do produtor, apesar da oposição de grandes organizações varejistas naquele país. Essa adesão, na prática, requer um sistema de coleta financiado por fabricantes e importadores e que opere com base no princípio de que “todos os que colocam embalagens no mercado contribuem na proporção dos materiais que geram”, segundo os termos do relatório da As You Sow.

É fundamental que as marcas globais que nos Estados Unidos aderem à responsabilidade ampliada do produtor façam o possível para que o mesmo princípio seja aplicado nos acordos setoriais em negociação hoje no Brasil. Se esse princípio for assumido, abre-se o caminho para que a governança da gestão de resíduos sólidos possa ser equacionada e para que o lixo se converta, o quanto antes, em riqueza a serviço do desenvolvimento.

* Ricardo Abramovay é professor titular da FEA e do IRI/USP, pesquisador do CNPq e da Fapesp e autor de Muito Além da Economia Verde (ed. Planeta Sustentável).

Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo, em 18 de junho de 2013.

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Este texto faz parte da série de artigos de especialistas promovida pela área de Gestão Sustentável do Instituto Ethos, cujo objetivo é subsidiar e estimular as boas práticas de gestão.

Veja também:
– A promoção da igualdade racial pelas empresas, de Reinaldo Bulgarelli;
– Relacionamento com partes interessadas, de Regi Magalhães;
– Usar o poder dos negócios para resolver problemas socioambientais, de Ricardo Abramovay;
– As empresas e o combate à corrupção, de Henrique Lian;
– Incorporação dos princípios da responsabilidade social, de Vivian Smith;
– O princípio da transparência no contexto da governança corporativa, de Lélio Lauretti;
– Empresas e comunidades rumo ao futuro, de Cláudio Boechat;
– O capital natural, de Roberto Strumpf;
– Luzes da ribalta: a lenta evolução para a transparência financeira, de Ladislau Dowbor;
– Painel de stakeholders: uma abordagem de engajamento versátil e estruturada, de Antônio Carlos Carneiro de Albuquerque e Cyrille Bellier;
– Como nasce a ética?, de Leonardo Boff;
– As empresas e o desafio do combate ao trabalho escravo, de Juliana Gomes Ramalho Monteiro e Mariana de Castro Abreu;
– Equidade de gênero nas empresas: por uma economia mais inteligente e por direito, de Camila Morsch;
– PL n° 6.826/10 pode alterar cenário de combate à corrupção no Brasil, de Bruno Maeda e Carlos Ayres;
– Engajamento: o caminho para relações do trabalho sustentáveis, de Marcelo Lomelino;
– Sustentabilidade na cadeia de valor, de Cristina Fedato;
– Métodos para integrar a responsabilidade social na gestão, de Jorge Emanuel Reis Cajazeira e José Carlos Barbieri;
– Generosidade: o quarto elemento do triple bottom line, de Rogério Ruschel;
– O que mudou na sustentabilidade das empresas, de Dal Marcondes;
Responsabilidade social empresarial e sustentabilidade para a gestão empresarial, de Fernanda Gabriela Borger;
Os Dez Mandamentos da empresa responsável, de Rogério Ruschel; e
O RH como alavanca da estratégia sustentável, de Aileen Ionescu-Somers.