As contínuas demonstrações do potencial negativo das alterações climáticas não convencem os mais céticos. Talvez por acreditarem que até o momento em que sentirmos “na pele” os efeitos, já teremos desenvolvido tecnologia suficiente para acelerar a adaptação necessária. Ou, como vemos com maior frequência, o total descrédito que as mudanças climáticas são consequência da globalização e de um modo de vida que surge com a revolução industrial. Aqui exploraremos como algumas populações indígenas da região de Roraima sentem em seu cotidiano a acentuação de eventos extremos e consequentemente alteração em seu calendário, cuja inspiração é decorrente da observação de seu entorno.
O Conselho Indígena de Roraima (CIR) foi fundado na década de 70 por lideranças indígenas da região para melhor se relacionarem com demandas vindas do contato com a população branca, como demarcação de terras, saúde, educação, cultura, gestão ambiental e desenvolvimento sustentável. Esta organização possibilita a articulação conjunta das 32 terras indígenas já homologadas no estado de Roraima, Pará e Amazonas, facilitando assim o alinhamento das demandas das populações que habitam estas terras, bem como aumentando a inserção dessas demandas em espaços de tomada de decisão política, como em assembleias locais, regionais e nacionais e, mais recentemente, em congressos internacionais.
A região em que estão estas populações é de especial importância, pois a soma destas 32 terras indígenas resulta em um total de 10.344.320 hectares de extensão, o que corresponde a mais de 46% do território de Roraima. Neste trecho estão localizadas as principais nascentes da bacia hidrográfica do Rio Branco, que produz 14% do volume de água lançada na bacia Amazônica. Também neste trecho está a terra indígena mais populosa, Raposa Serra do Sol, com mais de 22 mil habitantes, além da terra indígena mais extensa do país, a terra indígena Yanomami.
Com a demarcação destes territórios, também na década de 70, e a retirada de invasores, as populações indígenas começaram a reivindicar ao governo federal, projetos de recuperação florestal e de desenvolvimento de atividades econômicas condizentes com o modo de vida indígena. Deste modo, perceberam que a melhor forma de atuação seria a capacitação de pessoas indígenas residentes destes territórios como agentes ambientais, para que pudesse ser feito, por eles mesmos, o controle e documentação de atividades de recuperação florestal na melhor das hipóteses e na pior das hipóteses, onde estão localizadas cada uma das atividades ilegais (extração de madeira, garimpo e pecuária) e quais são os impactos percebidos.
Assim, começou o projeto de documentação das percepções locais sobre mudanças do clima, resultantes dos impactos do desmatamento e da exploração territorial. “AMAZAD PANA’ADINHAM – Percepções das comunidades indígenas sobre as mudanças climáticas – Região Serra da Lua – RR” é um relatório, dentre uma sequência de publicações sobre a temática, feitos pelo CIR, na época sob coordenação de Sineia Bezerra do Vale. Este estudo é uma tentativa de intersecção entre duas formas de saberes, o saber científico e o saber tradicional indígena. Tomam como ponto de partida a vigilância das atividades que acontecem dentro dos territórios demarcados, bem como a construção de inventários de percepções das pessoas que vivem e interagem com aquele ambiente há gerações. Deste modo, o CIR propõe a execução de um programa contínuo de observação, de gestão territorial e ambiental e capacitação de agentes indígenas para seu monitoramento.
“Desde o ano de 2008, o CIR realiza cursos de formação continuada para Agentes Territoriais e Ambientais Indígenas (ATAI), através do seu Departamento de Gestão Ambiental coordenado pela técnica indígena Wapichana, Sineia Bezerra do Vale, envolvendo representantes de todas as etnorregiões do estado e um total de mais de 240 agentes capacitados. Os agentes ambientais atuam diretamente no dia a dia das comunidades, enfrentando problemas como o acúmulo de lixo, desmatamento, queimadas e pesca predatória, e problemas externos ou no entorno das terras indígenas, como a limpeza periódica dos limites da terra, e denúncias sobre desmatamento, contaminação dos mananciais de água, queimadas descontroladas, e retirada de recursos naturais por invasores”, relata a publicação “AMAZAD PANA’ADINHAM – Percepções das comunidades indígenas sobre as mudanças climáticas – Região Serra da Lua – RR”.
O relatório demonstra através de entrevistas como são sentidas e percebidas as mudanças do clima no dia-a-dia indígena: na agricultura, no extrativismo, na caça e na pesca. A primeira etapa se concentra na construção de mapas cartográficos do território de cada aldeia pertencente à três terras indígenas (Jacamin, Malacacheta, Manoá-Pium) a segunda etapa é a construção de calendários que estão intrinsicamente ligados à certas atividades, que são chamados também de calendários ecológicos. Assim, com estes dois levantamentos é possível estabelecer a correlação entre alterações físicas nos territórios e percepções das mudanças climáticas que se dão pela mudança nas práticas tradicionais, tanto de cultivo, quanto de caça e pesca. Todas essas informações foram coletadas pelos agentes ambientais indígenas em colaboração com as etnorregiões acima citadas.
“Os povos indígenas detêm conhecimentos detalhados sobre os ciclos anuais e organizam diversas práticas de manejo de seus ambientes, baseados nesta experiência, na observação e na elaboração de medidas adaptativas de acordo com as dinâmicas ambientais. (…) Na medida em que os povos indígenas têm seus estilos de vida essencialmente baseados no manejo de recursos naturais, suas práticas tradicionais de manejo ambiental fazem deles observadores meticulosos das mudanças ambientais e climáticas. Assim, os conhecimentos indígenas surgem, neste cenário, como bases valiosas para a compreensão deste fenômeno, em escalas regionais que podem prover e complementar as pesquisas científicas globais voltadas para este tema”, descreve também o relatório sobre mudanças climáticas.
As percepções indígenas sobre mudanças climáticas compõem um campo de estudos que fortalecem a relação epistemológica entre dois sistemas de conhecimento, estabelecendo uma conversa entre dois modos muito distintos de relacionamento com o ambiente. Esta intersecção é muito interessante para possibilitar outras formas de pensarmos ecologia e mudança do clima. O livro biográfico e colaborativo entre Bruce Albert e Davi Kopenawa “A Queda do Céu” explora essa relação, por tratarem do povo Yanomami, também circunscrito no CIR, trazem um pouco de como estas percepções aparecem no pensamento indígena dentre diversos outros temas. O curta-metragem “Quentura” também discute as percepções das populações do alto Rio Negro sobre o desregulamento cíclico do calendário e suas consequências para o modo de vida indígena.
Por: Marina Esteves, estagiária de Práticas Empresariais e Políticas Públicas do Instituto Ethos
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