Além de causar milhares de mortes, a pandemia da Covid-19 traz a necessidade da população se isolar socialmente e se distanciar como uma medida de mitigação do espraiamento do vírus de forma intensa. Questões relacionadas à nova forma de se viver diante de uma pandemia colocaram todas as pessoas em xeque, assim como instituições no que se refere a tomadas de decisões e a capacidade das empresas em se adaptarem a novas formas de trabalho.
Ao observar todas formas de trabalho, nem todas pararam, e aqui estamos falando dos serviços essenciais. Serviços estes que englobam uma grande gama de áreas desde a saúde até as entregas nas residências. Com um olhar para estes serviços e com um recorte de gênero é possível observarmos a grande exposição que muitas trabalhadoras vêm tendo diante da pandemia para que possam continuar com suas atividades laborais. Essas atividades vão muito além daquelas exercidas por médicas, enfermeiras e de outras áreas da saúde. As mulheres estão, majoritariamente, presentes nos setores de serviços de limpeza, atendimento, como nos caixas de supermercados e farmácias, além de trabalharem, diversas vezes, diretamente com os alimentos, seja no preparo ou no fornecimento em restaurantes, por exemplo, deixando latente, assim, a maior exposição de mulheres que, muitas vezes, são chefes de família.
Outra questão que surge diante do trabalho feminino é o trabalho doméstico não remunerado e, consequentemente, as jornadas duplas ou triplas que se confundem durante esse período. Neste momento de isolamento social, muitas mulheres que são mães estão tendo que ajudar seus filhos e filhas com trabalhos escolares, lições de casa e dar atenção maior para estas crianças de modo geral. Além, é claro, de continuar assumindo todas as responsabilidades de suas carreiras profissionais, via trabalhos remotos, quando se tem a oportunidade de exercê-lo de suas casas. Essa sobrecarga, não só física, mas também emocional, contribui diretamente para os impactos na saúde mental dessas mulheres que acabam acumulando fardos e frustrações vindas de um sistema que as exige demasiadamente.
Algumas dessas mulheres, no entanto, conseguem dividir as tarefas domésticas e cuidados com seus filhos e filhas, com seus parceiros ou parceiras e com seus familiares. E é neste momento que é necessário ter um olhar especial para as mães solo e mulheres que trabalham fora, pois, muitas vezes, elas não conseguem ficar em casa e cuidar de si mesmas.
Essas mulheres precisam encontrar momentos para dar conta também de todas as tarefas dentro de suas próprias casas, e, muitas vezes, não têm apoio o suficiente. Algumas não têm parceiros ou parceiras, ou pessoas próximas que estejam por perto para ajudar, para dividir as várias responsabilidades para a manutenção de um lar e da criação de uma pessoa. Ter de lidar com todas estas questões de uma vez faz com que seja humanamente impossível ter o mesmo desempenho profissional e/ou acadêmico que é cobrado pela sociedade e pelo sistema capitalista em que vivemos.
Por outro lado, como se não bastasse, para aquelas mulheres que não estão sozinhas em seus lares ou que já vivenciavam alguma situação de violência, ainda existe a problemática do aumento da violência doméstica. Ainda em 2018, a Organização das Nações Unidas informou que o lugar mais perigoso para as mulheres são suas próprias casas. E neste momento em que é necessário ficarem isoladas, muitas mulheres são vítimas de seus maiores potenciais agressores, seus cônjuges. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, somente em março deste ano houve um aumento de 44,9% dos casos de violência doméstica no estado de São Paulo. Assim como os casos de feminicídio, que tiveram um aumento de 46,2%, no mesmo período.
Um ponto a se destacar é que essas são as notificações que foram registradas, mas as subnotificações, ou seja as ocorrências não denunciadas, ainda são os maiores entraves para termos um número real do verdadeiro perigo a que essas mulheres estão expostas. É importante frisar também que a violência doméstica e de gênero atinge muitas mulheres de formas diferentes e em situações diversas. No entanto, mulheres negras, pobres e periféricas ainda compõem o maior grupo de vítimas dessas violências. Além dessas mulheres, é importante olhar também para a situação das mulheres trans, que sofrem violências no âmbito doméstico, sobretudo, por suas próprias famílias, as quais, neste momento de isolamento, se encontram, muitas vezes, sob o mesmo o teto.
É necessário ter o devido cuidado de não reforçar a ideia romântica de que “mulheres são guerreiras”, “sempre são fortes” e “sustentam um lar mesmo com todos as adversidades”, porque, afinal, isso apenas reforça os papéis de gênero impostos pela sociedade patriarcal, ou seja, condiciona as mulheres a “aguentarem” esta situação de desigualdade, violência e sobrecarga física e emocional dentro e fora de suas casas.
Estamos falando, necessariamente, da divisão justa das tarefas domésticas, das responsabilidades envolvidas nos cuidados com as crianças inseridas no núcleo familiar, de modo a incluir sempre a presença dos homens, para o pleno desenvolvimento daquele meio e daquelas pessoas. Estamos falando também, e talvez, principalmente, do tempo para que as mulheres, que não podem dividir essas atividades com outras pessoas, consigam fazê-las, sem deixar suas carreiras e seus estudos, em quaisquer níveis, de lado, assim como uma forma justa para o desenvolvimento pessoal delas.
Dentro da responsabilidade social e empresarial, as empresas têm soluções e alternativas para que possam auxiliar suas colaboradoras para o enfrentamento desse grande obstáculo que estamos vivendo. Alternativas como a diluição da jornada de trabalho durante o dia para que elas consigam dar maior atenção para suas crianças, assim como a criação de canais de denúncia que as ajudem a denunciar agressões sofridas e, também, a criação de rodas de conversa para que entre as colaboradoras possa haver trocas de ideias e informações que as ajudem, além de diálogos para que os colaboradores possam, efetivamente, assumir as responsabilidades domésticas compartilhadas de forma igualitária, percebendo-se como parceiros e não isentos às responsabilidades.
Falamos também da urgência de reconhecimento dessas mulheres enquanto profissionais de serviços essenciais e não apenas como provedoras do seu próprio lar ou figurantes dos lares de outras mulheres. É necessário incluir cada vez mais mulheres nas tomadas de decisões que envolvam grandes responsabilidades e que permitam dar suas visões, assim como desenvolverem respostas para momentos como este. Não por elas saberem melhor como se administra “uma casa”, mas porque negar estes espaços é reforçar que o lugar das mulheres é subjetivo, sem importância, privado e nunca público. Mais ainda: é necessário incluir mais mulheres negras e mais mulheres trans nestes mesmos espaços para que, como disse Angela Davis, “toda a estrutura da sociedade possa se mover junto com estas mulheres e nos trazer mudanças reais”.
Por: Roberta Marina, estagiária do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, e Luiz Gabriel Franco, estagiário de Práticas Empresariais e Políticas Públicas do Instituto Ethos
Foto: Pexels