Ela é uma das principais lideranças da teoria crítica do racismo nos EUA, que examina as questões de poder na estrutura social do país e as causas do racismo.
Muito do que se imagina sobre as conquistas da luta antirracismo nos Estados Unidos não passa de um mito. A opinião é da norte-americana Kimberlé Crenshaw, professora de direitos civis das universidades de Columbia e da Califórnia em Los Angeles (Ucla). Ao lado do também norte-americano Luke Charles Harris, professor de ciências políticas do Vassar College, e da brasileira Jurema Werneck, presidenta da ONG Criola, a militante participou do Seminário “Ações Afirmativas para a Promoção da Igualdade Racial”, promovido pelo Instituto Ethos em São Paulo.
Uma das principais lideranças da teoria crítica do racismo, que examina as questões de poder na estrutura social dos EUA e as causas do racismo, Kimberlé mostra que, apesar de muitos avanços nas questões raciais, é nítido que a sociedade norte-americana não vive a era do pós-racismo.
A distância entre os salários de negros e brancos é a primeira evidência de que a luta por direitos iguais precisa continuar. “ Os afro-americanos ganham 65 % do salário dos brancos no país. A diferença acontece até entre profissionais que desempenham a mesma função”, diz ela. “Médicos e advogados brancos ganham mais do que médicos e advogados negros.”
Essa diferença na remuneração aumentou no período pós-crise econômica de 2008. A falta de acesso aos locais onde o dinheiro circula e onde surgem as boas oportunidades de trabalho e de educação é um dos grandes fatores que levam à desigualdade. “Isso impede que uma massa de pessoas tenha acesso a determinados empregos. Não é só o salário do negro que determina sua situação, mas suas possibilidades de atuação.”
Para ela, um dos maiores desafio da sociedade hoje é aceitar que o racismo persiste. “As pessoas têm dificuldade em acreditar que são racistas”, diz. “Isso se deve muito à mídia, que insiste em dizer que tais problemas estão relacionados a questões de diferenças salariais.”
Em relação ao setor empresarial, os EUA têm muito a ensinar ao Brasil. Atualmente, 72% das 500 empresas mais ricas norte-americanas têm pelo menos uma política de inclusão racial. Entre as 60 primeiras da lista, 92% adotam iniciativas para favorecer a inclusão de negros no seu quadro funcional. Esses avanços são resultado de políticas de governo que nasceram durante a administração de John F. Kennedy (1961-1963). Para incentivar a equidade dentro das empresas, o então presidente criou uma série de incentivos para companhias que contratavam afro-americanos, como isenção em taxas e impostos e inúmeras vantagens nas licitações governamentais. Tais políticas foram seguidas pelo sucessor de Kennedy, Lyndon B. Johnson (1963-1969), e pelo republicano Richard Nixon, que levou a ideia da inclusão racial para as instituições do mercado financeiro.
Com essas ações do governo, foi possível aumentar em 35% o salário dos negros e em 46% o número de trabalhadores negros em posição de chefia. O bom desempenho financeiro das empresas que adotam políticas de inclusão racial demonstra que a diversidade deixa a companhia mais eficiente e preparada para competir globalmente.
Essas informações foram apresentadas durante a mesa que discutiu o tema “A Questão Racial no Brasil e nos EUA – uma Análise Comparada para a Superação de Mitos”. Kimberlé Crenshaw, participante da mesa, é também fundadora do Fórum de Política Afro-Americana, um instituto dedicado à questão racial, justiça, gênero e direitos humanos. Nos anos 1990, morou no Brasil por um ano e participou de vários momentos do movimento negro no país.
Depois de sua participação no seminário, a professora conversou com o Instituto Ethos sobre os principais avanços do movimento no Brasil e nos EUA. Veja a seguir os principais trechos da entrevista.
Instituto Ethos: Como a senhora enxerga os avanços do movimento negro no Brasil?
Kimberlé Crenshaw: Venho para o Brasil desde 1994 e cheguei a viver no país durante um ano. Lembro-me de que as conversas sobre a questão racial ainda giravam em torno de como fazer a coisa acontecer. Participei de conferências e encontros com acadêmicos e advogados sobre o tema. Naquela época, as dúvidas eram como começar o movimento, como levar esse conhecimento para a sociedade e quais estratégias deveriam ser usadas para enfrentar os problemas do racismo. Era preciso fazer com que a sociedade enxergasse que era racista. Hoje observamos que houve avanços. Há programas de cotas nas universidades, a sociedade entende a questão de forma mais ampla e o movimento passou para outros países da América Latina.
IE: Como a senhora vê a atuação das empresas brasileiras em comparação com as norte-americanas?
KC: Seria difícil falar diretamente das empresas brasileiras, mas talvez o Brasil possa aprender com o que aconteceu nos EUA. Uma coisa é certa: as empresas costumam responder a incentivos governamentais e a medidas que moldam os negócios. Algumas estão mais atentas a essa conversa e entendem que a valorização da diversidade pode beneficiar não apenas os negros diretamente, mas toda a sociedade em geral. As pessoas falam muito que o Brasil está na posição de líder mundial, pois é dono de alguns dos maiores recursos naturais do planeta. No entanto, as pessoas são os maiores recursos que um país pode ter. E o maior recurso do Brasil é a sua população. É preciso dar oportunidade para que todas essas pessoas possam contribuir, deixar que os negros, por exemplo, mostrem seus talentos. É preciso fazer a mudança para uma sociedade mais integrada e saber lidar com as divisões sociais para incluir a população marginalizada.
IE: Como isso aconteceu nos EUA?
KC: Nos EUA, cada setor atuou à sua maneira. O setor de construção civil, por exemplo, era muito lucrativo, mas composto por pessoas brancas, pois durante anos funcionou em torno de um network com as mesmas pessoas. É preciso identificar quais são os erros para depois ver onde estão as oportunidades para mudança. O governo nos EUA teve um papel fundamental e muito significativo quando encorajou as empresas a abrirem a cabeça sobre a questão racial. É sempre um projeto de risco mudar a forma de fazer negócios. Empresas têm seus compromissos com o botton line, mas, como o governo é sempre um dos atores mais importantes do mercado para cada setor, seus estímulos são fundamentais. Quando o governo cria incentivos para que as empresas tenham acesso a mercados que antes não alcançavam, a mudança vem.
IE: Que tipos de benefício foram criados?
KC: Esses incentivos começaram nos anos 1960, com o Ato Permanente de Kennedy. Eles aparecem nos contratos. Por exemplo, empresas com políticas de inclusão de minorias ganham vantagens nos processos de licitação do governo. Pois é claro que, para uma empresa de porte menor, fazer ações afirmativas pode significar custos. Mas, se isso lhe der acesso a mercados que até então não atingia, claro que se torna interessante para seu negócio. A partir disso, as empresas precisaram mudar as formas de recrutar seus funcionários, de procurar as pessoas, pois, se não faziam o que estava no contrato, levavam multas.
IE: Isso significa que os avanços partiram do governo?
KC: Sim. Existe uma crença de que apenas o movimento civil conseguiu mudar a sociedade norte-americana. Mas isso não é verdade. A mudança nos EUA acontece num momento de confluência entre sociedade, administração, Congresso e Corte. Teve um momento, em que todos tiveram essa percepção. Éramos uma sociedade democrática, mas, de fato, não estávamos parecendo com isso. Era preciso olhar essas diferenças. Mas cada instituição deve fazer seu papel para haver integração. Hoje temos um presidente negro, Barack Obama, e certamente as coisas podem ficar mais fáceis, mas ainda não estamos onde deveríamos estar.
IE: A senhora fala muito em diversidade e competição global. De que forma esses conceitos estão relacionados?
KC: Acredito que uma força de trabalho homogênea não seja rentável para uma empresa. Ninguém vai conseguir atingir o mercado e clientes com uma estratégia monocromática. As empresas precisam ter diferentes perspectivas e formas de pensar em novos negócios. Uma empresa paroquial não consegue entrar num mercado global que é completamente diverso hoje. E as empresas perceberam que há vantagem competitiva em incorporar uma visão multicultural que reflita nos produtos e na imagem.
IE:A senhora acredita que as conquistas raciais nos EUA estão estagnadas?
KC: Esse movimento não é linear, não vai sempre para a frente. Em algumas áreas, depois da queda da economia, muitos negros voltaram à situação de 1984. Vinte anos de progresso e uma queda na economia fez com que o movimento sofresse um retrocesso. Precisamos ter a habilidade constante de ajustar nossas ferramentas de acordo com os acontecimentos históricos. Em termos de justiça, saúde e educação, fizemos grandes progressos desde 1954. Mas nem sempre as coisas funcionam o tempo todo. Também é natural que, às vezes, o terceiro setor puxe as mudanças e outras vezes o governo lidere. Temos de aceitar essas nuances. Todo movimento tem suas fases de avanço e retrocesso. É preciso estar vigilante em relação às nossas ferramentas, ao nosso discurso e às circunstâncias sociais. Muita coisa avançou. Hoje temos um presidente negro, o que está diretamente relacionado ao fato de o movimento negro ter maior força política no país e poder usar os processos políticos com maior representação.
Veja também a matéria “Empresas precisam avançar na promoção da igualdade racial”.
Por Giselle Paulino, para o Instituto Ethos
Na foto (da esq. para a dir.): Jurema Werneck, Luke Charles Harris e Kimberlé Crenshaw.
Crédito: Clovis Fabiano.