Nas últimas semanas, o Acampamento Terra Livre (ATL), encontro nacional em defesa dos direitos dos povos indígenas, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), impossibilitado de ser realizado em Brasília, como acontece anualmente há 15 anos, frente aos poderes da República, com suas pautas indígenas e seu contundente apelo por demarcação, manteve seu calendário de encontro e programação online e demarcou digitalmente telas de computadores e smartphones em todo o Brasil.
Dessa forma, promoveu o acesso e amplo debate sobre a vulnerabilidade, ameaças e invisibilidade dos povos indígenas, no contexto do racismo estrutural e desigualdades brasileiras, da crise da Covid-19 nas aldeias, nas cidades e na floresta, e no contexto do avanço do desmatamento perpetrado por invasões, descaso e pela ofensiva contra os direitos indígenas, deliberadamente mobilizada pela retórica do atual governo. Com isso, se avolumam as violências e assassinatos de indígenas em todo Brasil, que na ausência de uma firme fiscalização assumem a proteção de seus territórios, das florestas e de sua biodiversidade, como terra ancestral e sagrada.
Como resultado, o ATL endereçou uma carta ao diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) pela frente parlamentar mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, que reforça a demanda antes apresentada pela Aliança de Parlamentares Indígenas da América Latina, de priorização de medidas de proteção da vida dos povos indígenas de todo o mundo diante da grave pandemia, além da criação de um fundo emergencial para esse tema. Além disso, a carta registra a situação de insegurança alimentar que pode assolar comunidades inteiras e ainda a fundamental presença de organizações indígenas e de seus representantes no campo do planejamento e da implementação de ações de enfrentamento à Covid-19.
A carta ainda denuncia que no Brasil são inadequadas as medidas e estrutura do sistema de saúde para apoiar as comunidades e conter a transmissão da Covid-19, bem como a situação crítica dos indígenas que vivem no contexto urbano. Além disso, relata que indígenas que vivem no entorno de cidades ou em periferias, não atendidos pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) e descobertos das políticas de saúde da população indígena, correm o risco de se tornarem invisíveis nos registros de boletins epidemiológicos. Invisíveis e não monitorados, não é possível compreender o real impacto da Covid-19 sobre os povos indígenas. A pandemia expõe, portanto, a exclusão de indígenas que vivem em cidades em todo o Brasil.
Nos rincões do país, com dificuldade para acesso a saúde, povos indígenas estão tomando providências por conta própria para impedir a disseminação da doença nas aldeias e fazem o que podem, ora lançando mão da proteção dos pajés, que pouco podem contra as doenças dos brancos, ora recrudescendo o distanciamento, mantendo-se nas aldeias ou mesmo buscando isolamento na floresta, reiterando a memória de outras epidemias levadas pelos invasores brancos durante as últimas décadas, como sarampo, coqueluche, catapora e malária. A infelicidade inaugural do mau encontro, conforme caracterizava Pierre Clastres, fez com que muitos povos, se não mortos, se isolassem voluntariamente após uma série de experiências desastrosas e genocidárias de invasões.
Com importante destaque, o ATL denunciou a ofensiva unilateral da Fundação Nacional do Índio (Funai) com a instrução normativa número 9/2020, que permite a regularização e processo de reconhecimento de invasões em Terras Indígenas. A instrução foi editada pelo presidente da Funai e publicada em 22/04 alterando o regime de emissão da “Declaração de Reconhecimento de Limites”. O que está em jogo é que, com o instrumento, a Funai passa a certificar e chancelar imóveis e títulos. Invasores poderão solicitar o documento para a Funai e depois requerer ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), por cadastro autodeclaratório, a legalização de seu imóvel, podendo licenciar atividades econômicas inclusive em terra interditadas.
Aonde está o trunfo? A instrução determina que apenas terras indígenas homologadas devem constar no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF). Se as terras indígenas não homologadas não são enxergadas pela base de dados eletrônica, o imóvel rural não se sobrepõe e, portanto, a terra pode ser cadastrada e o requerente obter uma certidão. Uma vez emitida a certidão, a terra pode ser desmembrada, transferida, herdada, comercializada ou mesmo servir como garantia a empréstimos bancários.
Com a normativa, contestada pelo Ministério Público Federal e a despeito do Supremo Tribunal Federal, que veda o chamado retrocesso em matéria ambiental, terras indígenas ainda não homologadas e só interditadas e portarias de usufruto indígena estão em risco extremo, podendo resultar em violência, insegurança, aumento do enfrentamento entre indígenas e invasores, genocídio dos isolados e danos socioambientais irreversíveis.
As diretrizes da Funai de proteção, monitoramento e fiscalização são deixadas de lado em nome da possibilidade de se editar atos normativos internos. Com isso, atesta-se a atual incapacidade da Funai de defender a territorialidade indígena. A isso, Sonia Guajajara, líder indígena, atribui o nome de racismo institucional ou racismo de Estado. O antropólogo Viveiros de Castro já havia enfatizado e denunciado internacionalmente a existência de uma ofensiva econômica e religiosa no Brasil contra os indígenas, caracterizada por uma disputa de terras e almas ao estilo colonial. Portanto, as políticas de salvaguarda das populações indígenas e de suas múltiplas culturas correm grande perigo nesse momento em que o autoritarismo e os mecanismos antidemocráticos se demonstram em alta no Brasil e no mundo.
Uma estratégia para desmontar os mecanismos de defesa das comunidades tradicionais se dá por manobras administrativas e normativas, como com a passagem da tutela das terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura, a elaboração da Medida Provisória 910, o Projeto de Lei 191/2019, bem como as recentes exonerações no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e na Funai, além da militarização dessas instituições após fiscalizações contra garimpeiros e madeireiros ilegais.
Como apelou Sonia Guajajara, em nosso diálogo da Conferencia Brasileira de Mudança do Clima (CBMC) na programação da Acampamento Terra Livre Online, “não dá mais para os povos indígenas perderem as suas lideranças e pagar com a vida pela incompreensão da sociedade do que significa para os indígenas a demarcação de seus territórios”. A luta indígena, beneficia toda a sociedade, porque representando apenas 5% da população global, em seus territórios, protegem 82% da biodiversidade do planeta. Nas terras indígenas e na proteção de seus modos de vida, está a viabilização da floresta em pé e a proteção do estoque de carbono.
Como enfatizam Eduardo Viveiros de Castro e Ailton Krenak, os povos indígenas resistem há mais de 500 anos, só não há a certeza de que os não indígenas, com seu modo de vida, resistirão a mais 500 anos.
Por: Edson Lopes, gerente-executivo de Eventos do Instituto Ethos
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