Renomado climatologista detalha porque a adaptação ao aquecimento global não é uma opção
“Há um palpável risco de a temperatura no Brasil subir bem acima de 4oC nos próximos 100 anos”, afirma o renomado climatologista, Carlos Nobre, que integra o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). Não se trata de alarmismo ou exageros. Nesta entrevista exclusiva o especialista explica em detalhes porque é imprescindível mitigar os riscos do aquecimento global investindo em posicionamentos e mudanças de atitude. Tais ações são fomentadas em Grupos de Trabalho como o Fórum Clima, do Instituto Ethos, que desde 2011, tem empenhado esforços para a necessária transição para uma economia de baixo carbono.
Ethos: Durante sua participação na última reunião do GT Fórum Clima a sua fala foi muito contundente quanto aos malefícios que a humanidade pode vir a enfrentar com o aumento da temperatura. Você acredita que ainda falta uma maior sensibilização quanto ao tema por parte da sociedade e da esfera pública?
Carlos Nobre: De modo geral, a percepção da sociedade sobre os riscos das mudanças climáticas vem aumentando globalmente em todos os países. Curiosamente, o Brasil é um país onde a percepção que todos os esforços devem ser empreendidos para combater as mudanças climáticas é um dos mais altos do mundo. O avanço rápido da ciência em identificar, sem deixar grandes dúvidas, que são nossas atividades as responsáveis pelo aquecimento global nos trazem responsabilidades adicionais, bem representadas na unanimidade de adesão ao Acordo de Paris da Convenção de Mudanças Climáticas. A sensibilização da sociedade deve, agora, transformar-se em ações concretas de redução de risco, isto é, buscar trajetórias que nos levem a um futuro sustentável. Nesse ponto, a esfera pública em muitos países, inclusive no Brasil, ainda não incorporou políticas públicas que sinalizem claramente compromissos com a sustentabilidade da humanidade e do Planeta.
Ethos: No estudo “Riscos de Mudanças Climáticas no Brasil e Limites à Adaptação”, liderado por você, o apontamento é de que há um risco de pelo menos 30% de a temperatura média do Brasil chegar a 4°C ou mais em 2100, mas se as emissões de gases continuarem como estão a porcentagem aumenta para 85%. Especificamente o que estes números representam em impactos quanto a preservação da vida humana?
Carlos Nobre: Em análise de risco—como tipicamente uma companhia de seguros faz—busca-se calcular a probabilidade de eventos raros, mas de grande impacto. Na análise dos riscos climáticos, ao se tomar semelhante abordagem, temos que perguntar: se, por qualquer razão, as temperaturas aumentarem muitos graus, estaremos submetidos a algum risco catastrófico. Nesta abordagem, um evento que tenha 10% de probabilidade de ocorrer, mas que pode ser catastrófico, não pode ser descartado como de baixa probabilidade. Mesmo nos cenários de baixas emissões, há, por exemplo, entre 5% e 10% de as temperaturas ultrapassarem 3 oC no Brasil até 2100. Se não formos globalmente além dos compromissos contidos nas NDCs de cada país perante a Convenção Climática, o planeta pode aquecer entre 2.7oC e 3,5oC, o que equivale a aquecimento entre 3,2 oC e 4 oC no Brasil (os continentes aquecem mais rápido do que os oceanos nestas escalas de tempo). Este aquecimento já seria suficiente para afetar seriamente a possibilidade de manter contingentes humanos em partes do Brasil. Poderíamos atingir o limite fisiológico do corpo humano, que equivale a uma temperatura de 35oC e 100% de umidade relativa do ar. Nestas condições, nosso corpo não consegue perder calor e entramos em choque térmico. Por exemplo, para temperaturas de 42oC, se a umidade relativa ultrapassar 66% este mesmo limite é atingido. Se a temperatura no país aumentar mais de 4oC e os padrões de umidade relativa permanecerem os mesmos, atingir-se-ia estes limites no interior tropical do Brasil por várias horas do dia em muitos meses por ano. Sobrevivência somente em ambientes climatizados.
Ethos: Aqui no Brasil a mudança climática poderá levar o país ao caos extremo. Em sua análise pelo menos 9 milhões de pessoas podem ficar em risco de literalmente morrer de calor, algumas regiões do País podem ficar ainda mais favoráveis à disseminação do mosquito Aedes aegypti, a produção de soja e milho pode ficar bastante prejudicada, assim como a geração de energia elétrica e o risco de extinção de espécies pode subir 25%. Quais principais medidas podem ser adotadas pelo poder público para evitarmos esta situação?
Carlos Nobre: Estes exemplos de impactos resultam de cenários de aumentos de muitos graus na temperatura da superfície, aumentos estes acima de 4oC. São cenários extremos para sabermos exatamente os grandes riscos que estamos correndo. Se não formos bem-sucedidos na implementação do Acordo de Paris, há um palpável risco de a temperatura no Brasil subir bem acima de 4oC nos próximos 100 anos, com terríveis consequências. Mesmo nos cenários estudados pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) de redução das emissões, há um risco não desprezível entre 10% e 20% de excedermos 4oC de aumento de temperatura. Esta análise de risco não nos deixa muita escolha: mitigar os riscos requer que urgentemente passemos à fase de redução radical de emissões em todos os setores, principalmente em deixar a era fóssil para traz, em termos globais, já que mais de 70% das emissões globais advém da queima de combustíveis fósseis. Minimizar os riscos é cortar quase todas emissões de queima de carvão, petróleo e gás natural até meados do século, um desafio de grandes proporções, equivalente a uma radical ruptura com o modelo econômico do século 20.
Ethos: No âmbito das empresas, qual papel podem desenvolver em favor de frear o aquecimento global?
Carlos Nobre: Há muito que as indústrias podem e devem fazer para integrar o esforço global. O Brasil tem um dos maiores potenciais do mundo em energias renováveis não associadas a emissões, como as energias eólicas e solar. Diga-se, de passagem, que inovações tecnológicas e implementação massiva destas formas de energia reduziram exponencialmente seu custo e as tornaram economicamente competitivas com hidroeletricidade e termoelétricas a combustível fóssil e, em muitos casos, já se tornaram até mais baratas. Porém, a velocidade de implantação destes novos sistemas distribuídos no país é lenta e aquém de nosso potencial. Então, a indústria nacional deve rapidamente desenvolver um forte setor de fornecimento destas formas de energia. Isso avançou mais quanto à energia eólica, mas, no potencial de energia solar fotovoltaica, a indústria nacional está engatinhando. Assim como no caso da energia eólica, o setor privado deve se antecipar a políticas governamentais de regulação—ainda “hardwired” ao modelo de hidrelétricas—e inovar. Da porta da fábrica para dentro, eficiência energética é uma medida onde só há vencedores. Mas, a responsabilidade ética do setor industrial de se associar a trajetórias de sustentabilidade exige ações como, por exemplo, aumentar rapidamente a utilização de energias renováveis. Deve também contribuir para movermos para novos paradigmas de mobilidade com diminuição do transporte individual e eletrificação massiva do transporte público.
“Sem dúvida, mecanismos de precificação de carbono são poderosos elementos para a justa distribuição ao longo do sistema econômico de não termos somente ganhadores e perdedores. A precificação equilibra o jogo e fornece claros incentivos para transformações para tecnologias verdes, principalmente no setor de energia”
Ethos: O “Posicionamento Empresarial sobre Precificação de Carbono no Brasil”, cujo movimento o Ethos promove, se faz importante sob qual aspecto?
Carlos Nobre: Há várias maneiras de atacar a questão da política de mitigação do Brasil de modo a atingir plenamente as metas da NDC nacional (Contribuição Nacionalmente Determinada). Sem dúvida, mecanismos de precificação de carbono são poderosos elementos para a justa distribuição ao longo do sistema econômico de não termos somente ganhadores e perdedores. A precificação equilibra o jogo e fornece claros incentivos para transformações para tecnologias verdes, principalmente no setor de energia. Nesse sentido, espera-se que a precificação se torne política definida, aprovada e adotada amplamente. Por outro lado, muito pode ser feito pelo setor privado, mesmo enquanto tal mecanismos não é adotado, principalmente no setor de incorporação de novas tecnologias de produção com menor pegada de emissões e mais eficientes de modo geral.
Ethos: A participação das empresas em atividades como o Fórum Clima é uma forma delas assumirem compromissos e manterem-se atualizadas sobre a questão?
Carlos Nobre: É uma das atividades importantes para dar escala e peso político a um Fórum que acompanha a rápida evolução do conhecimento científico sobre mudanças climáticas e de soluções tecnológicas, institucionais e de governança para, por um lado, reduzir emissões e, por outro lado, tornar a indústria resiliente àquelas mudanças climáticas que já se tornaram inevitáveis. É um compromisso importante, mas, obviamente, as empresas têm que ir além e rapidamente desenvolver iniciativas de mudança de práticas—com as modernizações tecnológicas necessárias—em direção às tecnologias verdes.
Por Rejane Romano, do Instituto Ethos
Foto: História e Geografia Online