“A nova lei vai dar visibilidade a um trabalho que é imprescindível para o sistema financeiro e até agora não era considerado como tal”, diz Paulo Itacarambi.

Por Amélia González

Márcia chegou com o jornal e a novidade: queria conversar. Sempre tão calada e introvertida, ela tinha agora um assunto, o seu assunto, o projeto de emenda constitucional que ficou conhecido como “PEC das Domésticas”. Aqui em casa, nada muda, porque Márcia só vem de 15 em 15 dias. Mas e nos outros serviços, onde trabalha mais vezes? E a amiga, que é babá? Disse que a patroa dela está providenciando outra, para dividir o turno. Vai ser bom? Vai ser ruim? Vai ter desemprego em massa?

E Márcia saiu do seu conhecido mutismo. Tornar visível o trabalho doméstico talvez seja mesmo o maior sentido da nova lei, que também vai regularizar a vida de milhões de brasileiros e brasileiras. Pessoas fundamentais para o nosso dia a dia, que cuidam das nossas crianças, dos nossos idosos, dos nossos doentes, dos nossos animais domésticos. E ainda deixam limpas nossas casas, nossas roupas, enquanto investimos nosso tempo em estudo e no desenvolvimento profissional. Mas essas pessoas, até agora, não eram consideradas vitais para a economia, tanto que não entram nem na nossa medição de riquezas, o PIB.

Para o vice-presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, Paulo Itacarambi, a PEC é um passo importante, vai mudar essa cultura .

– Vai dar visibilidade a um trabalho que é imprescindível para o sistema financeiro e até agora não era considerado como tal – disse ele.

A PEC foi uma surpresa. Nas redes sociais, abriu o debate, provocou opiniões e logo se criou a “turma contra”, a “turma a favor”. Como questionar uma lei que, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), põe o Brasil num lugar de referência internacional em relação aos direitos dos trabalhadores domésticos? Esse papel ficou com as chefes de família, mães que criam sozinhas seus filhos pequenos, que precisam de alguém para cuidar deles enquanto trabalham muito mais do que oito horas por dia e não ganham um salário que permita pagar as horas extras. Vale lembrar que o IBGE divulgou uma pesquisa no ano passado mostrando que, nos últimos dez anos, a proporção de famílias chefiadas por mulheres cresceu mais do que quatro vezes.

Em pouco tempo, as redes sociais já tinham discriminado escravocratas ou liberais, discutido sobre classes sociais, papel feminino ou masculino na organização doméstica. Mas um setor fundamental ainda não foi chamado para a discussão: as empresas.

Aqui, faço um parêntesis para me apresentar. Em 2003 comecei a editar o “Razão Social”, suplemento do jornal O Globo que se especializou em abordar o tema da responsabilidade social corporativa. Depois de duas ou três edições do caderno, que durou nove anos, eu já tinha me afetado pelo tema de maneira irreversível. E, dentro das múltiplas abordagens que ele contém, venho também acompanhando a evolução das empresas.

Para ser mais franca, venho acompanhando a tentativa de as empresas se colocarem nessa esteira da responsabilidade social, movimento que por volta de 2006 começou a ser chamado de sustentabilidade. Há obstáculos reais, outros criados, outros aumentados. Fato é que não há uma corporação que se possa chamar de inteiramente responsável ou sustentável, embora selos e certificações não faltem.

O cuidado com a imagem é intenso. Nas áreas social e ambiental, que ganham maior visibilidade do público, são frequentes os anúncios de boas ações corporativas. Mas uma gestão sustentável precisa olhar também para outros indicadores e o cuidado com os funcionários faz parte deles. Isso não dá muita imagem. Pelo menos, não até agora…

Feito o parêntesis, coloco meu ponto de vista: não dá para alijar da discussão sobre a PEC das domésticas as empresas que empregam as patroas. Quer falar a sério sobre responsabilidade social corporativa? Então já tem que estar criando um núcleo, setor, departamento ou sei lá o quê só para cuidar disso, com o objetivo de tranquilizar as funcionárias. “Sim, estamos juntos nesse momento de mudança tão grande para a vida de todos.” Mas não vale só falar, tem que agir.

Num belo artigo escrito em primeira pessoa e publicado no jornal Folha de S.Paulo e nas redes sociais, a editora-chefe da BBC Brasil, a brasileira Silvia Salek, conta como foi sua experiência vivendo e trabalhando em Londres com a família:

“Aceitei uma promoção recente com uma condição: que pudesse trabalhar das 7h às 15h e tivesse tempo de buscar meus filhos na escola. A BBC aceitou meu pedido e, apesar do dia corrido (muitas vezes literalmente corrido pelas ruas de Londres para vencer o relógio), consigo chegar diariamente a tempo para minha segunda jornada, acompanhando o período pós-escola dos meus dois filhos, Marina, de 8 anos, e Marc, de quatro. E meu acordo, conhecido aqui como jornada flexível, não é algo fora do comum e inclui também o chamado part-time, ou seja, frações do tradicional tempo integral geralmente com reduções proporcionais no salário’’.

Desde 1998, o Instituto Ethos vem atuando junto às empresas no sentido de mobilizá-las e ajudá-las a gerir seus negócios de forma socialmente responsável, tornando-as parceiras na construção de uma sociedade justa e sustentável. Justamente por entender que com essa PEC estamos dando um passo nessa direção e que as empresas têm papel importante nisso, convidei o vice-presidente executivo do Ethos, Paulo Itacarambi, para refletir sobre o tema.

Itacarambi lembra que os trabalhos domésticos terão que ser divididos em casa, vai ser preciso mais tempo para dedicar à casa, aos filhos e este é um segundo impacto sério da nova lei.

—- Nos países ricos a maneira de lidar com essa questão foi aumentando o nível de automação dos serviços domésticos para diminuir o tempo de trabalho. Será que aqui também vai acontecer isso? — pergunta-se ele.

O executivo lembra que, em se tornando um trabalho visível e absorvido pelo sistema econômico, o trabalho doméstico fará parte, também, da cadeia produtiva. Como tal, as empregadas domésticas se tornam uma espécie de fornecedoras para as empresas: são elas que cuidam das casas de seus funcionários(as) para que eles possam trabalhar.

— Não é demais pensar que as empresas possam criar um “vale empregada doméstica” como um benefício, assim como existe o vale refeição, o vale transporte. Seria um incentivo. A empresa terá dois caminhos: ou libera o funcionário para ficar mais tempo em casa, com seus filhos, ou incorpora isso como custo – disse Itacarambi.

Rita Afonso, pesquisadora do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fala no lugar de chefe de família – já que criou praticamente sozinha suas duas filhas — e como profissional que acompanha de perto o papel das empresas na sociedade. Ela conta que, quando a notícia da nova lei correu, teve uma conversa com sua empregada, que a acompanha há 18 anos.

— Hoje nossa relação é diferente. Mas, quando ela começou a trabalhar aqui em casa, tinha chegado de Minas Gerais e não tinha lugar para morar. Eu estava separada do meu marido, trabalhava durante o dia numa consultoria e lecionava à noite. Ganhava pouco, não teria dinheiro para pagar horas extras. Na verdade, se essa lei já existisse, possivelmente minha vida profissional teria seguido outro caminho, porque eu não conseguiria pagá-la para ficar com minhas filhas à noite. Ficamos conversando sobre isso, lembrando também que hoje o Brasil está diferente, já não há mais tanta migração para as grandes cidades como antigamente – disse Rita.

A pesquisadora não acredita que as empresas estejam preparadas para esse novo marco em nosso modelo civilizatório:

— Elas não conseguem nem ainda respeitar alguma equidade na hora de pagar os funcionários. As mulheres ganham menos do que os homens, várias pesquisas já mostraram isso. Imagina se vão conseguir ter esse olhar de respeito, no sentido de liberar as mulheres mais cedo para buscarem seus filhos na escola. As empresas vão se fazer de mortas por um tempo para ver como as coisas vão caminhar. O pior é se a lei entrar naquela caixinha de “leis que não pegam”, como tem muito aqui no Brasil. Aí, o que vai acontecer é que as empregadas vão ter que se submeter, sob pena de perderem o emprego, porque as mulheres não vão conseguir cumprir o que a lei exige. E isso será muito degradante – disse Rita.

Uma coisa que aprendi estudando a sustentabilidade é que fazemos parte de um macrossistema em que as peças têm de ser mexidas em compasso, em sintonia com as outras peças. Talvez tenha sido essa a inspiração para John Elkington, considerado o decano do movimento de sustentabilidade corporativa, criar a expressão triple bottom line. Por coincidência, enquanto eu amadurecia o tema para este primeiro post no site G1, estava lendo o livro The New Economics, de David Boyle e Andrew Simms, ainda sem tradução no Brasil. O livro trata da emergência de se modificar o sistema econômico atual para algo que dê mais valor às pessoas do que ao dinheiro, e um de seus capítulos é justamente sobre o trabalho doméstico, “que não aparece, que não é absorvido pelo mercado financeiro, mas que está intrinsecamente ligado à necessidade humana”.

Boyle e Simms são britânicos e deixam claro que esse também é um calcanhar de aquiles para o Reino Unido, onde cerca de 890 mil pessoas com mais de 16 anos exercem um trabalho informal, durante mais de 50 horas por semana, de ajuda a idosos, preenchendo a lacuna deixada por aqueles que estão nos escritórios. Uma economia diferente teria um olhar cuidadoso e atento para essas pessoas, assim como para as que pegam as crianças na escola ou cuidam do lar enquanto outros trabalham. Eles precisam ser considerados importantes dentro do sistema econômico, avaliam os autores.

De mais a mais, estamos falando de trabalhadores que, quando recebem seus salários, vão às compras e causam impacto, aquecem a economia. Um estudo feito pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (parceria entre o Pnud e o governo brasileiro), divulgado em outubro do ano passado, dá conta de que os trabalhadores domésticos estão entre as categorias mais beneficiadas pelos aumentos reais de renda no Brasil.

“Em decorrência do aumento da renda e do consumo, bem como seus efeitos multiplicadores, gera-se, na economia, um aumento da produção, principalmente de bens de consumo durável e serviços – como eletrodomésticos e serviços de saúde. Os ganhos monetários de bem-estar equivalem a cerca de US$ 25 bilhões, entre 2006 e 2011, distribuídos de forma progressiva nos decis [níveis] de renda. O ganho monetário equivalente de bem-estar chega a mais de duas vezes o valor da renda mensal dessas famílias”, conclui o estudo feito por Edson Domingues e Kênia de Souza.

Este é o pé da pirâmide, uma camada da população que tem chamado muito a atenção dos economistas e das multinacionais, sobretudo as que prestam serviços e vendem produtos para essas pessoas. Empresas que têm funcionárias que precisam desse serviço doméstico para continuar trabalhando. Viram como tudo se encaixa?

Texto publicado originalmente no blog Nova Ética Social, do portal G1.