Flavia Resende comenta a temática a partir dos trabalhos desenvolvidos no Ethos

No âmbito nacional, a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012) tem como objetivo promover o acesso universal à cidade, assim como o planejamento e gestão democrática do Sistema Nacional de Mobilidade Urbana. No seu artigo 6º, a política destaca a priorização dos serviços de transporte público coletivo sobre transporte individual motorizado. Essa diretriz da política vai diretamente ao encontro da definição de uma cidade inteligente, de acordo com alguns especialistas, dentre eles Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá. De acordo com Peñalosa, o espaço urbano inteligente é caracterizado pelo estímulo ao convívio e a livre circulação a pé e de bicicleta, além de ofertar opções de transporte público eficiente. Complementando essa definição, uma cidade inteligente consiste em local onde cidadãos e cidadãs participam de forma democrática das decisões de planejamento e uso do espaço público.

Porém a atual situação nas grandes metrópoles brasileiras é de grande congestionamento, falta de qualidade de vida, altos índices de poluição no ar, falta de segurança para pedestres e estresse no deslocamento casa-trabalho, para mencionar somente alguns dos problemas relacionados ao mal planejamento e gestão da mobilidade na cidade.  Dentro desse cenário, é importante reconhecer que o impacto gerado por empresas na mobilidade da cidade é significativo.  Para dialogar sobre o papel da tecnologia e da inovação na melhoria da mobilidade urbana de São Paulo, surgiu o ForumMobi, reunindo os mais diferentes setores da sociedade, incluindo empresas, sociedade civil, academia e setor público.  Após inúmeras consultas, reuniões e aprofundamento das principais medidas necessárias para a melhoria da mobilidade, dois aspectos se destacam no nosso contexto atual em São Paulo: é urgente a promoção do uso do transporte público e também inadiável a racionalização do uso automóvel na cidade.

Foi com todas essas preocupações em mente que o ForumMobi preparou uma lista de contribuições para o edital de licitação do transporte público e coletivo de São Paulo. Após um levantamento entre organizações dos setores empresarial, sociedade civil, academia e setor público, o grupo identificou vários aspectos do edital que precisam de melhoria para refletir os objetivos acima: criação de um sistema de ônibus democrático, que abarque a diversidade de usuários e usuárias, que seja acessível, seguro, amplo, não poluente e operado de forma transparente, eficiente e efetiva. Não é uma tarefa fácil, mas considerando os números do edital: um sistema que prevê a operação de 12 mil ônibus, quase 1200 linhas, para atender um público de aproximadamente 9 milhões de pessoas por dia envolvendo custos no montante de R$ 66 bilhões, a participação social é, no mínimo, imperativa e necessária.

Para garantir que os ônibus operem de forma eficiente e efetiva, as contribuições apontaram melhorias que focam diretamente na escolha das novas empresas responsáveis pela operação dos ônibus. O principal ponto de crítica aqui foi o longo tempo de contrato de concessão, estabelecido em 20 anos pelo edital. Olhando para aspectos de competitividade, o estabelecimento de contratos de 20 anos não estimula em nada a melhoria dos serviços prestados, já que garante a manutenção da operação do sistema pelas mesmas empresas, por um longo tempo. Ainda pelo prisma da competitividade, seria importante criar novas estratégias para estimular a entrada de novas empresas no processo. Novas empresas e nova concorrência estimulariam melhorias nas propostas e serviços oferecidos, pressionando as companhias, atuais operadoras do sistema a melhorarem suas operações. Seria igualmente importante que o processo do edital de concorrência estimulasse a entrada de empresas internacionais para garantir mais competitividade, atrair novos investimentos, ideias e tecnologias. Por último, a criação de mecanismos que barrem a concentração de grandes lotes e concentração de poucas empresas, possibilita a entrada de novos agentes econômicos no sistema e evita a permanência de certos vícios de gestão e de operação.

Outro ponto a ser revisto no edital é a posse de garagens e o tempo de início de operação: a flexibilização da posse de garagens é imprescindível para estimular outras empresas, incluindo estrangeiras, para participar desse processo. O prazo para início de operação também precisa ser ampliado para garantir tempo hábil às empresas entrantes, para que consigam adequar o tempo do início do serviço com a contratação de pessoal e compra dos ônibus, entre outras providências que precisam ser tomadas nesse início de operação.

Garantir a transparência na gestão do transporte coletivo é também essencial para garantir um bom serviço aos cidadãos e cidadãs de São Paulo: dentre algumas medidas listadas pelas contribuições do ForumMobi, destacamos a promoção de ampla e recorrente divulgação dos custos do sistema; divulgação de indicadores de eficiência na operação como cumprimento dos horários e indicadores de qualidade da operação; estabelecer um fórum de participação social para coletar continuamente sugestões de melhorias e promover audiências públicas no caso de criação ou, principalmente, corte de linhas já existentes. Em complemento a isso, garantir excelentes e efetivos canais de comunicação, através dos quais a população pode realizar suas reclamações e compartilhar sugestões de melhoria.

Para contribuir com o engajamento das empresas com o tema, o ForumMobi também lançou um Guia Temático de Mobilidade Urbana – uma ferramenta de apoio a empresas e organizações que desejam aprimorar suas práticas relacionadas à mobilidade. O guia apresenta uma série de indicadores que se dividem por temas, olhando para a visão e estratégia das empresas, governança e gestão, aspectos sociais e ambientais. Oportunidades de melhoria não faltam e o guia vai ajudar na orientação das empresas e outras organizações que desejam engajar suas equipes na melhoria, tanto interna, quanto externa, dessas práticas relacionadas à mobilidade.

Acreditamos que, a implementação das medidas acima, por atores públicos e privados, pode proporcionar um processo mais focado na melhoria da qualidade do serviço para a população e não para responder aos interesses de grupos empresariais, que mantem a atuação no município de São Paulo. Inovar é também ousar e para isso, reformar o processo de licitação na maior cidade do Brasil é um passo inevitável e necessário.

Por Flavia Resende, do Instituto Ethos 

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