A produção e o próprio uso do automóvel estão no centro dos debates sobre sustentabilidade. Que soluções o setor vem adotando para superar os desafios?
Por Paulo Itacarambi, vice-presidente do Instituto Ethos
Desde que eclodiu a crise financeira de 2008, uma das medidas mais recorrentes para manter a economia aquecida tem sido incentivar a venda de automóveis.
O carro talvez seja o produto que melhor simboliza a nossa civilização. Ele ajudou a moldar a indústria, a cidade, a vida em comunidade e os indivíduos desde que Henry Ford conseguiu produzi-lo em larga escala e os bancos criaram linhas de crédito específicas para financiar a aquisição desse bem. E hoje, a indústria automobilística tornou-se vital para o desenvolvimento econômico de países emergentes, como o Brasil, e mesmo daqueles mais industrializados.
A força do setor automotivo alavanca outros setores da economia. O segmento é o segundo maior mercado da indústria do aço, consumindo quase 15% da produção total desse material, perdendo apenas para o setor da construção civil. Outros importantes clientes da indústria automotiva são os setores do alumínio (5%), petroquímico (em especial plásticos, com 7%) e do vidro.
Em 2011 foram produzidos cerca de 80,1 milhões de veículos no mundo – um crescimento de 4% em relação a 2010, que teve uma produção de aproximadamente 77 milhões. Na União Europeia, o setor representa 3% do PIB e 7,5% do total da produção industrial. No Brasil, há, em média, um veículo para cada 6,9 habitantes. O setor representa 12% do PIB (entre indústria e comércio) e movimenta R$ 1 em cada R$ 10 na economia. A Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave) calcula que o setor deve crescer 5% em 2012, estimativa superior àquela do próprio PIB do país: nas avaliações mais otimistas, este não deve passar de 4%.
No entanto, a produção e o próprio uso do automóvel estão no centro dos debates sobre desenvolvimento sustentável. Quais são os impactos e soluções que o setor vem adotando para superar os desafios de sustentabilidade?
Delinquentes da sustentabilidade
Na Conferência Ethos Internacional 2012, o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luciano Coutinho, se referiu aos carros como delinquentes da sustentabilidade, pelos impactos socioambientais que podem ser creditados a eles, tais como:
– Emissões de gases de efeito estufa
A verdade é que os automóveis são responsáveis por grande parte das emissões dos gases de efeito estufa nas cidades.
– Relação peso/carga
O economista Ricardo Abramovay, em artigo publicado na Folha de S.Paulo, lembrou que o automóvel individual com base no motor a combustão interna é de uma ineficiência impressionante. Ele pesa 20 vezes a carga que transporta, ocupa um espaço imenso e seu motor desperdiça entre 65% e 80% da energia que consome.
– Espaço ocupado
Na internet, vários blogs e sites mostram, numa sequência de três fotos, o espaço de uma rua ocupado por 54 pessoas, por um ônibus que acomoda essas 54 pessoas e por 54 carros. Nessa última opção, a rua fica congestionada.
– Letalidade
Congestionamentos, que já fazem parte do cotidiano das grandes cidades, matam. Em 2009, o Laboratório de Poluição Atmosférica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) fez um estudo e verificou que a poluição dos carros causa a morte indireta de quase 20 pessoas por dia, na região metropolitana de São Paulo, pois doenças cardiorrespiratórias são muito agravadas pelas emissões veiculares.
– Prejuízos econômicos
Os congestionamentos interferem na mobilidade e no próprio desempenho da economia, já que as pessoas levam cada vez mais tempo em deslocamentos. O economista Ladislau Dowbor calculou que os congestionamentos da cidade de São Paulo geram um prejuízo de R$ 50 milhões por dia só em atrasos, sem contabilizar a emissão de carbono no período em que o paulistano fica parado no trânsito. O tempo parado em congestionamento fez com que o filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca afirmasse, em uma entrevista recente ao site Planeta Sustentável, que o automóvel, que veio como um meio para garantir a liberdade de ir e vir, acabou por se transformar num tipo de cárcere privado.
– Diminuição da área para agricultura
O escritor Lester Brown alertou para outra consequência da subserviência ao automóvel: milhões de hectares de terras férteis e agricultáveis viraram estradas e estacionamentos em todos os países do mundo. Qual o impacto desse fato na produção de alimentos? Ninguém ainda calculou.
– Mais impactos
O Uniethos lançou recentemente um estudo chamado Sustentabilidade do Setor Automotivo no qual lista treze impactos socioambientais dessa indústria. Além de problemas de mobilidade, poluição, mortes e acidentes, o estudo apontou outros impactos, tais como: condições degradantes de trabalho nas cadeias da cana-de-açúcar, do aço, do alumínio e de metais ferrosos; baixa transparência em questões socioambientais; baixa diversidade no quadro de trabalhadores; e falta de ações para a disposição final do veículo e suas partes.
Desafios e soluções
Mesmo reconhecendo a importância da indústria para a economia brasileira e mundial, acadêmicos, economistas, ambientalistas, governos e sociedade civil têm procurado aprofundar a reflexão sobre os impactos do automóvel na civilização e possíveis soluções e alternativas aos problemas levantados.
O estudo do Uniethos analisou as práticas de responsabilidade social e de sustentabilidade das sete maiores montadoras do mundo, no Brasil e nas matrizes. Concluiu que lá fora essas empresas têm alguns programas e ações inovadoras para enfrentar os dilemas do desenvolvimento sustentável.
Eis alguns exemplos:
- Na União Europeia, existe a Competitive Automotive Regulatory System for the 21st Century (Cars 21), uma articulação entre o setor automotivo, governos nacionais, ambientalistas, sindicatos, fornecedores, clientes, a indústria do petróleo, o Parlamento Europeu e a própria Comissão Europeia, com o objetivo de reforçar a competitividade global da indústria e a manutenção de empregos, bem como realizar progressos em matéria de segurança e desempenho ambiental, a um preço acessível ao consumidor. No relatório de 2012, estão listadas recomendações para essa indústria chegar a 2020 em novo patamar, como as seguintes: financiamento para pesquisa de novas tecnologias visando eficiência energética e redução de emissões de GEE; gerenciamento dos custos do setor por meio de regulações; negociações para chegar a marcos regulatórios; e convergências de procedimentos no sentido de obter a aprovação para um modelo de carro mundial. Isso vai permitir que qualquer carro produzido no mundo seja comercializado em qualquer país.
- Nos EUA, a Ford, a GM, a Chrysler, a Honda e a Toyota começaram a trabalhar em colaboração, em 2005, por meio da Automotive Industry Action Group Initiative (Aiagi), para explorar uma abordagem cooperativa da indústria, buscando promoção de condições dignas de trabalho na cadeia de abastecimento, com fornecedores atuando em vários locais do mundo, inclusive no Brasil.
- Na China, a GM assinou acordo com a Shangai Automotive Industry Corporation (Saic) para o desenvolvimento conjunto de novas motorizações, bem como um memorando de entendimento para explorar a cooperação em veículos de energia nova (como carros elétricos). Outros acordos em vigor incorporam a estratégia de introduzir doze novos motores mais eficientes até 2015. A GM possui também um memorando de entendimento com a Tianjin Eco-City para resolver problemas de mobilidade. A Tianjin Eco-City é um empreendimento de 30 km2 que está sendo construído perto da cidade de Tianjin, na China, destinado a ser uma vitrine de novas tecnologias e um modelo para o desenvolvimento urbano sustentável das cidades. A GM já entregou o modelo Volt, um carro elétrico que conserva energia. A bateria o alimenta por 80 km e, quando ela está descarregada, um gerador no motor produz eletricidade para mais 490 km.
Por esses poucos exemplos, é possível concluir que as mesmas montadoras que atuam no Brasil estão com projetos e ações bastante avançados em outros países, enfrentando os desafios da sustentabilidade. Todavia, pelo levantamento do Uniethos, as práticas de RSE e de sustentabilidade em nível nacional estão bem aquém daquelas aplicadas na Europa, nos EUA e na Ásia.
Por que essas e outras montadoras que também atuam no país não desenvolvem ações em favor do trabalho decente? Por que não utilizam sua influência para induzir comportamento responsável nas cadeias produtivas? Por que não estimulam as negociações com os governos por projetos e regulamentações que enfrentem os desafios da sustentabilidade, como fazem lá fora?
De qualquer forma, é importante ter em mente que, por mais eficientes que sejam os veículos, o crescimento indefinido do número deles é insustentável.
O estudo Sustentabilidade do Setor Automotivo está disponível no site do Uniethos (www.uniethos.org.br) para acesso gratuito. Ele também traz as leis e regulações nacionais ligadas aos impactos, os desafios e os pontos de alavancagem sobre os quais as montadoras podem estabelecer políticas e iniciativas de sustentabilidade.
11/7/2012