A pandemia de coronavírus (Covid-19) teve como um de seus inesperados resultados evidenciar a urgência do debate sobre mudanças climáticas e, consequentemente, medidas necessárias para sua contenção. Especula-se que por conta da expansão da fronteira agrícola, alcançamos nichos ecológicos nunca antes contatados, propiciando assim, o encontro com vírus desconhecidos. Portanto, a continuação deste processo de exploração do território, além da discussão corrente sobre alteração de eventos climáticos, pode, eventualmente, desencadear novas epidemias. A discussão sobre mudanças climáticas, segundo Sonia Guajajara, foi um dos principais temas de discussão no Acampamento Terra Livre de 2020, que aconteceu inteiramente online neste ano, e dentro deste guarda-chuva temático de mudanças climáticas, a pandemia da Covid-19 se torna um assunto de grande importância e urgência.
As populações indígenas sofrem constantemente com a invasão de seu território e com a negação de seus direitos à ele. Previamente à pandemia já vivíamos um momento de escalada da tensão entre as políticas públicas adotadas por esta gestão do governo federal em relação a manutenção e expansão dos territórios indígenas no Brasil, sob o argumento de que o desenvolvimento econômico deve vir da exploração econômica do território e constante avanço da fronteira agrícola. Esta percepção do potencial comercial de um território exclui a importância da manutenção de biomas para o equilíbrio pluvial, por exemplo, do qual depende a produção agrícola. Sonia comenta a afirmação que 13% do território nacional são territórios indígenas demarcados e que isso seria “muita terra para pouco índio” já que a população indígena representa cerca de 1% da população brasileira, então continua: “Você não vê ninguém questionar que 46% da propriedade rural está na mão de 1% dos mais ricos, dos latifundiários. Geralmente essa propriedade está sendo utilizada para o que? Para o agronegócio, pras fazendas, para as grandes produções de monoculturas, né? De eucalipto, de cana de açúcar. Então 46% tá na mão de 1%, nós temos 13% também na mao de 1%. O que que tem em cada uma delas? Onde estão os indígenas, o que tem? Água limpa, alimentação saudável, floresta em pé, biodiversidade garantida, flora e fauna protegida. Onde está os 46%, tem o que? Devastação, degradação, veneno, agrotóxico”.
Sonia argumenta que a luta pela manutenção dos territórios indígenas não é apenas uma luta das populações indígenas, mas pelo fato desses territórios abrigarem nascentes de rios, espécies em extinção, biomas inteiros e ecossistemas essenciais para o equilíbrio meteorológico de todo o continente, deve se tornar uma preocupação para a população em geral. Mundialmente, as populações indígenas representam cerca de 5% da população e são responsáveis pela proteção de 82% de toda biodiversidade. Assim, este tipo de manejo, de forma de relação com o ambiente, que está concentrada em terras indígenas, é essencial para a manutenção da vida humana, consequentemente é necessária a manutenção de seus territórios para que isso possa acontecer. Segundo Sonia: “Então, como as pessoas podem dizer que não tem nada a ver com demarcação de terra?”. Além de um direito, não apenas constitucional, mas originário, o modo de vida indígena pensa o humano como parte integrante do ambiente, tendo que manter uma relação saudável com o seu entorno para garantir o mesmo acesso à recursos naturais à gerações futuras.
A percepção das mudanças climáticas pelas populações indígenas não é novidade. O relatório do Conselho Indígena de Roraima (CIR), produzido pelos povos indígenas da região, é um exemplo de estudo científico indígena. A percepção de alteração climática aparece com a secura percebida pelas mulheres na plantação, pelo aumento das queimadas, pela alteração do calendário de plantio. Como conta Sinéia do Vale, os próprios indígenas, agora formados como agentes ambientais, percorrem o território fazendo buscas e registrando alterações percebidas: áreas desmatadas, áreas ocupadas por garimpeiros e madeireiros, o aumento dos extremos climáticos, época chuvosa com maior intensidade de precipitação e época seca mais seca do que era esperado. A partir destes relatos foi elaborado o plano de enfrentamento às mudanças climáticas incorporado ao relatório do CIR. Estes estudos propiciaram maior ênfase deste modo de obtenção de conhecimento em encontros nacionais e internacionais que discutem mudanças climáticas, agora protagonizados pelas próprias populações indígenas que lidam e percebem as alterações em seu cotidiano. Esta maior presença e incidência indígena nos espaços de tomada de decisão é de extrema importância para a valorização do trabalho que fazem relatando e combatendo alterações climáticas na linha de frente, além de valorizar diferentes formas de percepção e de produção de conhecimento.
Não é coincidência que as maiores taxas de preservação ambiental venham de terras indígenas, como comenta Jozileia Kaingang. Ela conta que, originalmente, a população Kaingang ocupava uma área de extensão desde o Rio Grande do Sul até Minas Gerais e que o território que tem hoje é fruto de uma demarcação sem diálogo com as populações indígenas, foi um território arbitrariamente determinado pelo Estado. Este fato traz algumas consequências como, por exemplo, esta população que antes ocupava um território extenso tem que desenvolver práticas diferentes de manejo para se adaptar à um território diminuído, colocando diversas famílias em situação de acampamento para retomada legal das terras que ocupam.
A paralisação dos processos de homologação das terras indígenas atinge diretamente populações que se encontravam em processo de retomada de territórios e para acrescentar, a medida provisória 910 facilita a obtenção de títulos de posse fundiária, favorecendo a legitimação do território para outros grupos sociais que não os indígenas, que tradicionalmente ocupam estas áreas. Nesta época de pandemia isso é triplamente perigoso: primeiro porque o isolamento social é feito na aldeia e sem terras demarcadas, não há espaço adequado para essa prática; segundo porque a SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena), como apontam as representantes indígenas, tem uma estrutura que deixa a desejar quanto ao cuidado com a saúde indígena normalmente e em uma pandemia isso é acentuado, fora o fato de que a SESAI prioriza atendimento à reservas indígenas já demarcadas, excluindo portanto populações urbanas e em retomada; e terceiro que sem a demarcação de terras, outras populações não-indígenas podem acessar o território, sendo potenciais vetores da disseminação do novo coronavírus. Mais uma vez, a demarcação de terras se mostra essencial para a manutenção tanto da biodiversidade e de ecossistemas, quanto para a garantia da saúde indígena e a manutenção de suas práticas tradicionais de convivência.
Por: Marina Esteves, estagiária de Práticas Empresariais e Políticas Públicas do Instituto Ethos
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