Instituto Ethos integra coalizão
Um mês após a comemoração de 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Brasil se viu envolvido pela história de uma menina de 10 anos que engravidou em decorrência de estupro cometido por seu tio. Ao drama do abuso sexual, praticado de forma reiterada ao longo de quatro anos, e da gestação precoce e indesejada, somaram-se as dificuldades de acesso da criança ao direito legal a um aborto seguro.
As múltiplas violações de direitos e violências que compõem essa história não são um caso isolado, como revelam os dados sobre violência sexual contra crianças e gestação precoce no país. Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), 54% das vítimas do sexo feminino de estupros registrados no Brasil em 2018 tinham até 13 anos. O mesmo levantamento apontou que a cada quatro minutos uma menina dessa faixa etária é violentada sexualmente no país. É de conhecimento público que parcela significativa dessas meninas são abusadas por familiares ou pessoas próximas à família, o que facilita seu acesso às vítimas e dificulta enormemente o rompimento de ciclos de violência, muitas vezes prolongados por anos. Assim, os perpetradores da violência sexual ficam quase sempre impunes, levando à reiteração do crime contra suas vítimas.
A violência sexual contra crianças e adolescentes produz uma série de consequências trágicas, como a gestação precoce. De acordo com estudo do Comitê Latino-Americano e o Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), meninas de 14 anos ou menos sofrem mais complicações na gestação e no parto, estando mais sujeitas a riscos como pré-eclâmpsia, eclâmpsia, ruptura de membranas, parto prematuro e diabetes gestacional, tendo quatro vezes mais chance de morrer do que mulheres de 20 a 30 anos. Para além de prejuízos físicos, há impactos na saúde mental, como depressão e ansiedade, sendo também significativo o número de mães adolescentes que pensam em suicídio. Dados do Ministério da Saúde revelam que o Brasil registra em média seis abortos por dia em meninas de 10 a 14 anos. A pasta também divulgou este ano a informação de que mais de 20 mil bebês nascem todos os anos de meninas de até 15 anos de idade.
O direito a um aborto seguro e legal em casos de gestação decorrente de violência sexual está previsto no Código Penal brasileiro. Apesar disso, a questão ainda suscita polêmica. As dificuldades enfrentadas e o caminho percorrido até que a menina de 10 anos finalmente tivesse acesso ao procedimento demonstraram como a efetivação de direitos consolidados não é trivial. Demonstraram também que ainda há muito a fazer para garantir que crianças e adolescentes tenham prioridade absoluta no que diz respeito à garantia de seus direitos mais fundamentais, previstos em lei.
Vale destacar também que ainda que as meninas representem a maior parcela das crianças e dos adolescentes violentados, meninos também são vítimas de violência sexual, estando expostos ao trauma psicológico dela decorrente e de doenças sexualmente transmissíveis. Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve ao menos 12 mil estupros contra vítimas do sexo masculino no país em 2018, a maior parte delas meninos de até 14 anos. Considerando que o estupro é um crime de elevada subnotificação, sabe-se que esse número é subestimado.
Como já apontado, o país celebrou os 30 anos do ECA em 2020. Trata-se de legislação tida como uma das mais avançadas do mundo em matéria de promoção e proteção dos direitos das crianças e adolescentes, que garante o direito à inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, além do direito de serem protegidos contra qualquer tipo de violência. Bem mais recente, mas igualmente importante, a Lei da Escuta Protegida (Lei 13.431/17) assegura o segredo de justiça e a não revitimização no curso do atendimento prestado pelos serviços voltados às crianças e adolescentes vítimas de violência. Dotado de marco legal robusto para a proteção da infância e da adolescência, o país patina na efetivação dos direitos assegurados pela legislação.
Essa efetivação exige a formulação e implementação de políticas públicas integradas e multissetoriais por parte de todos os níveis de governo. A implementação das políticas, por sua vez, requer que lhes sejam destinadas recursos financeiros de forma sustentada. Nessa seara, o cenário atual é desolador. Levantamento recente do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) apontou a drástica redução de recursos públicos destinados ao enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes nos últimos anos, rubrica que simplesmente desapareceu do plano orçamentário em 2019. Vale dizer que já em 2016 os recursos destinados a esse fim eram inexpressivos e nada foi gasto.
A baixa prioridade ilustrada pela falta de orçamento para políticas de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes contrasta com os números dessa violência, que cresceram em 2019, segundo o já citado Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Com a pandemia, o isolamento social e a suspensão das aulas, sabe-se que os riscos enfrentados por crianças e adolescentes se tornaram ainda mais agudos, diante do triste fato de que parcela significativa dos abusos ocorre nas casas das vítimas.
Ante esse cenário, é urgente que a União reveja e reformule o orçamento destinado às políticas de prevenção e enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Não se faz boa política sem recursos e os dados indicam com clareza que esse é um problema cuja superação ainda demanda grande investimento. Mas, se é necessário cobrar dos governos e do Sistema de Garantia de Direitos que priorizem a proteção da infância e da adolescência, é preciso também reconhecer e reafirmar que ela é dever de todos.
Casos de violência sexual que se prolongam por anos são comuns. Por isso, é essencial que todos estejam atentos aos possíveis sinais de que crianças e adolescentes estejam sendo vítimas de abusos, que nem sempre serão verbalizados. Também é fundamental que todos estejam preparados para oferecer o acolhimento e realizar os encaminhamentos adequados a uma rede capacitada e disponível. A responsabilidade pelo acolhimento e denúncia é de todos, bem como o dever de proteger a identidade, a integridade psicológica e o acesso aos direitos.
Sociedade civil, governos, Poder Legislativo, sistemas de justiça e segurança pública, profissionais da rede de proteção, pais e cuidadores são responsáveis pela garantia de uma infância e juventude segura, saudável e plena. Sem o envolvimento de todos e a destinação de recursos a esse fim, seguiremos sendo o país em que crianças e adolescentes têm seus direitos violados cotidianamente em ciclos de violência e falta de acesso aos direitos.
Brasil, 24 de setembro de 2020.
Assinam pela Coalizão Brasileira pelo Fim da Violência Contra Crianças e Adolescentes:
4Daddy
Aldeias Infantis SOS Brasil
ANDI – Comunicação e Direitos
Associação Casa da Cidade – Rádio Madalena
Associação Brasileira de ONGs (Abong)
Associação Internacional Maylê Sara Kalí (AMSK)
Centro de Educação e Cultura Popular (Cecup)
Centro de Estudos Integrados, Infância, Adolescência e Saúde e da Clínica de Adolescentes
(CEIIAS)
Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (CIESPI)
Childhood Brasil
Cidade Escola Aprendiz
Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes
Engajamundo
Eu Me Protejo
Fórum Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes de São Paulo
Fundação Roberto Marinho/Canal Futura
Girl Up Brasil
Grupo Mulheres do Brasil
Inclusive – Inclusão e Cidadania
Instituto Alana
Instituto da Infância (IFAN)
Instituto de Cidadania e Direitos Humanos (ICDH-MG)
Instituto dos Direitos da Criança e do Adolescente
Instituto Ethos
Instituto Fazendo História
Instituto Liberta
Instituto Sou da Paz
Instituto Update
Laboratório de Análise e Prevenção da Violência (LAPREV/UFSCar)
Maria Gorete Oliveira Medeiros Vasconcelos – G&M/Interkonexus Treinamento e Desenvolvimento de
Projetos Sociais
Movimento Down
Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua da Paraíba (MNMMR-PB)
NECA – Associação de Pesquisadores e Formadores da Área da Criança e do Adolescente
Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP)
Plan International Brasil
Projeto Brejal Maceió
Rede ECPAT Brasil
Rede Nacional da Primeira Infância (RNPI)
Rede Não Bata, Eduque
Rede Temática de Garantia de Direitos da Criança e Adolescente – RTGDCA (GIFE)
SaferNet Brasil
Serviço Franciscano de Solidariedade (SEFRAS)
Transparência Capixaba
Foto: Unsplash