A insegurança no uso de dados no Brasil
O adiamento da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), definida ontem pelo Governo Federal, é preocupante. Publicada no Diário Oficial da União, via Medida Provisória (MP) n° 959, o caso repete os moldes do que tem sido algo frequente pelo atual governo: a inclusão de assunto destoante embutindo em uma MP sobre outro assunto. No caso em questão, apontamos que a referida MP é discordante quanto a abordar a operacionalização do pagamento da Renda Básica Emergencial. Consideramos a medida arbitrária, feita e publicada por um governo que não considera o debate público e está em descompasso com da sociedade.
A proteção de dados pessoais se faz ainda mais necessária à medida que estamos diante de um avanço descontrolado e desregulamentado do compartilhamento de dados, sobretudo de localização, haja visto o uso dos dados das operadoras de telefonia e a recente MP 954, agora suspensa por liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), que autorizava o compartilhamento de dados com o IBGE.
Os riscos às proteções e liberdades individuais vem se agravando num momento em que o autoritarismo se mostra em alta globalmente e em que as saídas asiáticas para o enfrentamento à Covid-19 lançaram mão de instrumentos intrusivos da liberdade e de vigilância social.
Diante da celebração da eficácia dos modelos de monitoramento dos fluxos para o distanciamento social, o campo da mobilização e manipulação de dados emerge como sensível para a arbitrariedade política e privada, promovendo a insegurança para a privacidade.
Ainda recentemente, o Governo Federal, que deveria ter tomado as medidas necessárias para a estruturação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), se absteve de sua função e, ao invés disso, se dedicou a publicar um Guia de Boas Práticas do Governo Digital, demonstrando grande negligência com o tema ao não cumprir os ritos necessários para a implementação da Lei.
A LGPD tem o objetivo de garantir os direitos fundamentais a liberdade e privacidade, promovendo orientações acerca do tratamento e armazenamento de dados sensíveis, ordenando responsabilização em caso de danos ou violação da própria lei. Desta forma, prorrogar a implementação de uma lei que já era mais do que necessária, só fragiliza ainda mais a garantia de direitos fundamentais em um cenário em que se exacerba o uso de tecnologias e canais digitais, seja para trabalho, atendimento na área da saúde ou comunicação.
O Instituto Ethos vem desempenhando uma forte atuação para a implementação efetiva da LGPD. Essa nova prorrogação deixa explícito a falta de comprometimento do governo federal com a agenda de transparência e integridade.
Entendemos que o tempo de adaptação para as empresas e governo é necessário. No entanto outras medidas, que não o simples adiamento, devem ser tomadas. A instauração da ANPD, a publicação de recomendações de tratamento dos dados pessoais e uso para enfrentamento da pandemia, bem como orientações para os acordos com as operadoras de telefonia são caminhos necessários.
Acreditamos que em meio a maior crise do século XXI, a adoção de medidas preventivas para conter os possíveis abusos gerados pela situação atual é indispensável, dessa maneira, retardar a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados inibe a efetividade dos mecanismos de controle, a garantia do cumprimento legislativo e proteção aos direitos individuais. É uma nova demonstração de risco ao Estado Democrático de Direito e deve ser revogada.
Foto: Unsplash