Está disponível na Netflix o documentário There’s Something in the Water coproduzido pela professora Ingrid Waldron e codirigido por Ellen Page, Ian Daniel e Julia Sanderson. O filme é baseado em um livro de mesmo título da professora Waldron e aborda a historicidade do racismo ambiental e os impactos na saúde de comunidades negras e indígenas no Canadá, na região da Nova Escócia.
Enquanto Trump, ao início de seu mandato, bradava contra a imigração e assediava jornalistas, o primeiro ministro Justin Trudeau reagia anunciando que os que fugiam de perseguições, do terror e de guerras, seriam bem-vindos no Canadá. Este, então, anunciava que a diversidade e o multiculturalismo, aos moldes liberais, eram a força do Canadá. Naquele momento, Trudeau e Merkel compunham o contrapeso à internacionalização do “trumpismo” e de seu correlato xenofobismo e direitismo.
Em política as coisas não são simples. O Canadá, segundo maior parceiro comercial dos EUA, não se contrapôs e nem descartava uma negociação bilateral, com exclusão do México, já que por anos, antes do TLC, EUA e Canadá já tinham um acordo bilateral. Trudeau então se confirmava como um liberal, mas também como um pragmático em relação ao protecionismo republicano. O que isso teria a ver com o documentário acima? A racionalidade liberal e as democracias, mesmo as mais maduras e autoproclamadas promotoras da diversidade, não estão completamente imunes ao racismo.
A recente filosofia francesa pós estruturalista, com eco em muitos intelectuais contemporâneos relevantes, como o filosofo pós-colonial Camaronense Achille Mbembe, traduzido no Brasil pela n-1 Edições, pulverizou e afirmou o debate sobre a dimensão da racialização na estratégia política. Nesse processo de racialização, a cultura ou o modo de vida, por exemplo, substituem o lugar da biologia que fundamentou a experiência do racismo em grande parte do século XX, como no nazismo, no Apartheid ou na segregação racial estadunidense. O que há de mais atual nessa filosofia que emergiu na década de 80 é que o racismo é compatível com as políticas da vida, que majoram a saúde das populações e do meio ambiente. O estado de direito tem no racismo um mecanismo fundamental para o seu funcionamento e coloca em circulação a convivência e a tolerância a discursos e práticas racistas correntes ao redor do globo, mesmo em democracias e mesmo em países declaradamente aderentes ao Acordo de Paris.
É essa a mensagem do documentário There’s Something in the Water. Partes específicas da população são expostas desproporcionalmente à morte, à violência, à criminalização e aos maiores danos do aquecimento global. O racismo ambiental correlaciona ainda o uso e a exploração da terra à exploração das pessoas e ao risco de morte.
Em There’s Something in the Water a exposição desproporcional das comunidades indígenas e negras ao ônus ambiental, faz comunidades inteiras adoecer, se tornarem mais vulneráveis ao suicídio e perder os elos com a terra e a paisagem, dificultando seus meios de sobrevivência. Contemporâneos às doenças e mortes, estão os acordos malsucedidos, desrespeitados, leis que são desmanteladas e adiadas, não sei conluios entre setores privados, setores públicos e administradores, mas ecoam durante todo o documentário as perguntas: por que algumas comunidades são menos merecedoras? Por que os membros de algumas comunidades não têm o direito de envelhecerem juntos? Por que seus “quintais” podem receber rejeitos industriais?
Enquanto parte dos brasileiros estão confinados, alguns poucos em condições de home office, bombardeados por notícias sobre o enfrentamento à Covid-19 e práticas preventivas, a ausência do saneamento básico e a economia da “viração” e dos “corres”, expõem uma grande parte de brasileiros ao risco de morte por coronavírus. No Brasil, 29 milhões de brasileiros não usufruem de saneamento básico e 6,2 milhões não têm acesso a água potável. Nas favelas e periferias o saneamento e a água potável nunca foram serviços universais, a criminalização, o desemprego, e a violência sim. Sabemos que a maioria desses brasileiros são negros, mas ficaremos impossibilitados de identificar a mortalidade, morbidade, cobertura e acesso real dessa população sem a inclusão da informação raça/cor em todos os formulários e sistemas da Covid-19 como o Fromsus e o e-SUS-VE.
Na onda das economias neoliberais, o Brasil também desmantelou o sistema de saúde e às pressas, recorrendo a toda sorte de medidas excepcionais aciona recursos para providenciar infraestrutura necessária, kits de testagem, leitos de UTI e EPIs para o enfrentamento da Covid-19. No bojo dos cortes dos últimos anos, além dos mais pobres nos centros urbanos e no campo que compõem a maioria dos que ficam sem cobertura do atendimento básico e especializado em saúde, também quilombolas e indígenas necessitam hoje de repasses urgentes de recursos para que os Distritos Sanitários Indígenas e subsistemas de saúde tenham autonomia para combater a entrada do vírus nas terras de povos originários e tradicionais. Se a Covid-19 é mais letal entre os mais velhos, como alerta o antropólogo Marcio Meira, certamente os povos indígenas serão muito mais ameaçados, porque a população indígena poderá viver um achatamento na base e com isso a cultura desses povos se coloca sob iminente ameaça. Por que essas parcelas da população podem ser historicamente, recorrentemente e desproporcionalmente colocadas em risco de morte e desaparecimento?
Nesse contexto, a reflexão merece destaque e é uma necessidade. Como tal, que outro nome podemos dar a essas violências, que não racismo? Como se move essa linha imaginária que pode precarizar a vida de alguns em lugares específicos nas cidades, no campo ou nas florestas, seja no Canadá, no Brasil e em outros cantões do globo? Como romper não só essas correlações, entre comunidades e lugares, mas também o nível de tolerância ao racismo nas democracias?
Enquanto estamos isolados, sob pressão da pandemia e das respostas excepcionais dos governos, podemos extrair consequências políticas, não só do contexto, mas até de atrações da Netflix. Esse modo de aproveitar nossas pausas pode ser riquíssimo para abrir nosso pensamento a outras epistemologias. Se há uma chance de reeditarmos o futuro pós pandemia, a prática antirracista e a implosão da matriz colonial serão fundamentais para nos debruçarmos a novas formas de convivência.
Por: Edson Lopes, gerente-executivo de Eventos do Instituto Ethos
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