Ha muito tempo sabemos que os pobres, negros e negras estão submetidxs ao terror, à violência policial, à criminalização e ao encarceramento em massa. Contemporizamos uma reprodução econômica, política e cultural que combina desigualdades, brutalidades e negócios legais e ilegais, como a tendência de privatização das instituições de custódia ou mesmo a indústria da vigilância e segurança. A política, que costuma alegar a passividade do consenso, escamoteia a conflitividade, como sugere a inversão da tese de Clausewitz operada por Foucault, “a política é a guerra continuada por outros meios”.
Quando olhamos os países que mais encarceram no mundo, conseguimos entender que a guinada neoliberal colocou bastante confiança subjetiva no poder punitivo para resolver os problemas sociais. O trabalho de juristas e sociólogos como Raul Zaffaroni, Loic Wacquant, Angela Davis, Achille Mbembe, são alguns exemplos de investigações detalhadas sobre a simbiose entre a redução do bem-estar, da precarização e da perda da proteção social e a maximização do tratamento da pobreza a partir da criminalização, da política penal e da seleção dos corpos e existências sem valor. Não sem agitar também um mecanismo subjetivo correlato da responsabilização do pobre pela pobreza, em contraponto ao caráter empreendedor valorizado pela ética capitalista.
Todas essas investigações e inúmeras outras constatam uma seleção. A essa seleção, a esse corte e sua coerência, é que se atribui o racismo. Este, condena ao desaparecimento e à morte, quando já não supõe que estejam mortos. É por isso que incomoda tanto quando negros e não negros antirracistas passam a falar, escrever, criar e gritar, por que isso agita uma outra construção e confiança subjetiva. Isso intercepta uma coerência discursiva e simbólica que põe luz a mecanismos e modos de vidas que, no mais das vezes, fomos acostumados, normalizados a não notar e sequer problematizar.
Como funciona a coerência do racismo? Esse tipo de problematização é fundamental para a terapêutica da política, da economia e da cultura.
Há um capitulo magistral em “Origens do Totalitarismo”, de título “O Pensamento Racial Antes do Racismo”, em que Hannah Arendt relata que na década de 30 o racismo não era uma arma nova, evidentemente, mas já refletia a “opinião pública de todos os países europeus”. Para Arendt, a originalidade do século XX é que nunca o racismo tinha sido usado com “meticulosa coerência”. Tanto “Origens do Totalitarismo” como o curso “Em Defesa da Sociedade”, discorrem sobre as duas ideologias que contaram com mais proeminência na passagem do século XIX para o XX, a qual interpreta a história como luta econômica de classes e como luta natural entre raças.
Arendt aborda uma competição entre ambas ideologias, Foucault, ao contrário, aborda uma continuidade, uma substituição. Ambos remetem suas investigações acerca do racismo moderno aos textos do Conde de Boulainvilliers, que preocupado com o crescente poder político do terceiro estado e com uma condução historicista sobre as origens da nobreza francesa, buscou refutar a lógica de unidade da nação, alegando a distinção peculiar e eterna da nobreza.
Para Boulainvilliers, as classes inferiores francesas, embora não fossem escravas, não eram livres por nascimento e sim pela graça, enquanto os nobres gozaram sempre em sua história da liberdade por nascimento. O que os nobres tentavam afirmar era uma origem genealógica irredutível a ideia de nação.
Arendt e Foucault mostram em suas obras, como o discurso das diferenciações na dimensão histórica, de uma certa forma, um tipo de discurso revolucionário, primeiro no caráter antinacional e mais tarde nacional, de internalização da guerra de raças irá gerar as condições para a emergência da aristocracia natural liberal – traduzível nos termos contemporâneos como meritocracia -, transferindo-se de um debate da nobreza para um debate formador das classes médias liberais e das ralés na Europa, que terão como laboratório o imperialismo sobre a África.
O problema posto pelo racismo foi o da preocupação obsessiva com a diferenciação externa ou interna e da convivência, como esclarece Arendt acerca da América e da Inglaterra “onde os povos tinham que resolver o problema da convivência após a abolição da escravatura”. O que leva Foucault a uma análise muito precisa sobre como a ideia de luta de raças vai desaparecendo e dando lugar ao tema singular da raça, ou melhor, da sociedade, e do imperativo da soberania do Estado para a proteção do que é possível construir como uniforme, como verdadeira representação da sociedade normalizada. O tema da segurança interna e da defesa da sociedade, portanto escamoteará, pela figura do inimigo interno a se combater, as zonas conflituosas da convivência dos desiguais e do teatro de sombras das incertezas da guerra civil.
“Portanto, glória e infâmia do discurso das raças em luta. O que eu quis lhes mostrar foi esse discurso que nos apartou, com toda clareza, de uma consciência histórico-jurídica centrada na soberania e que nos fez entrar numa forma de história, numa forma de tempo (…) em que a questão do poder já não pode ser dissociada da questão das servidões, das libertações e das alforrias”, apontou Foucaul no curso “Em Defesa da Sociedade”.
Para qualquer pessoa que se interessa pelo debate sobre o racismo, atravessar o curso “Em Defesa da Sociedade”, de 1975-1976, e o livro “Origens do Totalitarismo”, inicialmente publicado como “O Fardo de Nosso Tempo”, em 1951, é fundamental. Como nos alerta a própria Arendt no prefácio da primeira edição “de nada serve ignorar as forças destrutivas de nosso século”. Já Foucault, cuja investigação sobre a biopolítica emerge no curso de 1975, nos apresenta a peculiaridade do racismo moderno como aquilo que assegura a função da morte no funcionamento de todos os Estados para exercer seu poder soberano.
Para ele, o racismo é uma tecnologia moderna tão próxima de nós, que o olhar atravessa para ver outra coisa. Ambos e tantos outrxs, como Mbemb, nos ajudam a entender que apesar de qualquer promessa, à direita ou à esquerda, jamais seremos felizes e, conforme sugere Arendt, “compreender significa, antes de mais nada, examinar e suportar conscientemente o fardo (…) sem negar sua existência, nem vergar humildemente a seu peso. Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela – qualquer que seja”.
Esses autores também abrem os horizontes para pensarmos sobre como pode acontecer de nos cercarmos da tarefa de problematizar a coerência discursiva e simbólica de nossa época, em nosso próprio gesto, em nossa própria prática.
Por: Edson Lopes, gerente-executivo de Eventos do Instituto Ethos
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