Apoiamos o envio ao Congresso pelo governo de anteprojeto de lei que estabeleça uma nova legislação para a exploração da biodiversidade no país.
Por Jorge Abrahão*
Nosso caro leitor sabe do que é feito o xampu que usa diariamente? Esse produto muito provavelmente contém algum princípio ativo extraído da flora brasileira, como o jenipapo, do Cerrado, o mandacaru ou o juá, da Caatinga, e o guaraná ou o jaborandi, da Amazônia. Aliás, vários desses produtos são usados também como alimento e na produção de medicamentos. O jaborandi, por exemplo, contém a pilocarpina, uma substância que é usada na produção de colírios para o tratamento de glaucoma.
Todos esses produtos naturais estão à nossa disposição graças à imensa biodiversidade do nosso país, ou seja, a enorme riqueza da flora e da fauna brasileiras – a maior do mundo –, distribuída em biomas tão variados quanto a Floresta Amazônica, a Caatinga, o Pantanal, a Mata Atlântica, os Pampas e a área costeira.
Mas a mera existência desses produtos de nada adiantaria se não fossem os conhecimentos sobre a sua utilização prática que os povos tradicionais, como os indígenas, os caiçaras e os quilombolas, vêm acumulando e preservando ao longo de séculos sobre as mais variadas aplicações da flora e da fauna do país. No entanto, a remuneração sobre isso não vai para os indígenas ou para as comunidades locais, que são os verdadeiros detentores do conhecimento sobre o potencial de determinadas plantas, mas sim para as indústrias que registraram o princípio ativo delas como sua propriedade.
Um exemplo clássico de apropriação de um produto da flora brasileira foi o caso do cupuaçu, no começo da década passada. Uma empresa japonesa simplesmente registrou e patenteou como sua propriedade o nome dessa fruta tipicamente amazônica, em escritórios de marcas do Japão, dos Estados Unidos e da Europa. O governo brasileiro reagiu duramente, com o argumento de que “cupuaçu” é o nome próprio de uma fruta amazônica, assim chamada há milênios por índios do Brasil e do Peru. Ainda assim, a batalha contra esse registro levou cinco anos, até ele que acabou cassado em todas as praças em que vigorava.
Uma das formas de corrigir essa imensa injustiça em relação aos povos tradicionais é garantir uma repartição justa e equilibrada dos benefícios recebidos por meio do nosso patrimônio genético. E esse é um dos objetivos de um anteprojeto de lei que deve ser encaminhado ao Congresso pela Presidência da República com o propósito de estabelecer uma nova legislação para a exploração da biodiversidade no país, isto é, um novo marco legal.
Outro objetivo dessa nova legislação é facilitar o acesso a esse patrimônio e ao conhecimento tradicional sobre ele, reduzindo as barreiras impostas pela legislação atual ao seu uso em produtos comerciais. O marco legal em vigor foi criado em 2001, quando a grande preocupação do país era se proteger da biopirataria (a exploração de nossos recursos naturais sem autorização). Por isso, ele colocou tantos obstáculos que o acesso ao patrimônio genético brasileiro foi dificultado até mesmo para os pesquisadores das universidades.
Daí a importância se voltar a levantar a questão da ratificação do Protocolo de Nagoya, que trata exatamente do acesso a recursos genéticos e repartição justa e equitativa dos benefícios advindos de sua utilização. No ano passado, a presidente Dilma Rousseff enviou ao Congresso uma mensagem solicitando essa medida, mas até agora não houve nenhuma resposta. Espera-se que o tema volte à pauta quando for debatido o texto do novo marco regulatório.
É importante salientar que, para a construção da proposta de uma nova legislação, o governo vem mantendo um amplo diálogo com empresas de medicamentos, cosméticos e produtos alimentícios, com as comunidades tradicionais e também com cientistas, envolvendo os ministérios do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia.
Nós, do Instituto Ethos e do Movimento Empresarial pela Biodiversidade – Brasil (MEBB) sempre fomos favoráveis ao estabelecimento de um novo marco legal e por isso apoiamos a iniciativa do governo. No entanto, não foi estipulada uma data para o envio desse anteprojeto de lei ao Congresso, o que nos parece preocupante.
A criação de um novo sistema de acesso aos recursos genéticos do Brasil e de repartição de seus benefícios é também um dos grandes objetivos do MEBB, que foi lançado em 2010 para mobilizar empresários e ONGs brasileiras em favor do estabelecimento de uma cultura de uso sustentável da biodiversidade no âmbito dos negócios. Em 2012, o MEBB se reuniu com um grupo mais amplo de associações empresariais a fim de construir uma proposta para esse novo marco legal, um texto que não trouxesse insegurança jurídica para as empresas, estimulando assim o desenvolvimento tecnológico com base na biodiversidade brasileira.
Durante o VI Seminário do Fórum Amazônia Sustentável, no final do ano passado, o MEBB abriu um diálogo com as comunidades tradicionais ali representadas. Todos se comprometeram a continuar com o processo de diálogo na busca por um consenso entre o setor empresarial e as comunidades e colaborar para que o novo marco legal seja aprovado o mais rápido possível.
É por essa razão que, embora achemos louvável a iniciativa da Presidência da República de enviar esse anteprojeto ao Congresso, insistimos para que sejam estabelecidos prazos concretos para a discussão e aprovação dessa legislação, que será de suma importância para as comunidades locais, para as empresas e para a preservação da nossa biodiversidade.
* Jorge Abrahão é presidente do Instituto Ethos.