Agregar valor é a essência daquilo que define qualquer empresa. O fundamental é saber o conteúdo dessa agregação, afirma Abramovay.
Por Ricardo Abramovay
O que mais chama a atenção na lista internacional dos cem melhores presidentes de empresa, publicada na edição de janeiro/fevereiro deste ano da Harvard Business Review, é a impressionante distância entre o bom (para os acionistas) e o bem (para a sociedade).
No artigo da prestigiosa revista, o abismo é literal e está num boxe cujo título é “Does doing good help CEOs do well?” (“Será que o bom desempenho ajuda os executivos a fazerem o bem?”).
A resposta é inequívoca: “Não há correlação entre resultados financeiros e responsabilidade social”.
O texto mostra algumas exceções a essa regra e assinala a existência de 5% dos executivos que se destacam no campo financeiro e no socioambiental, sugerindo que a unidade entre as duas dimensões não é impossível.
E conclui de maneira singela: “Nós não prevemos um tempo, num futuro próximo, em que medidas de desempenho social serão tão objetivas quanto as medidas de desempenho financeiro que nós desenvolvemos. Isso dito, vamos continuar rastreando o que fazem os presidentes de empresa nas duas áreas, com o objetivo de encorajá-los a brilhar em ambas”.
Mas a objetividade dos números não tem que ser necessariamente a antecâmara do cinismo. Iniciativas socioambientais palpáveis podem ser muito eloquentes. Na verdade, o desempenho financeiro em virtude do qual os líderes empresariais foram escolhidos esconde custos cuja contabilização mudaria inteiramente o perfil dos seus negócios.
Já citamos, na Folha de S.Paulo, o trabalho inédito liderado por Jochem Zeitz presidente da Puma: se o consumo de água, a produção de lixo, a emissão de gases de efeito estufa, a poluição atmosférica, a erosão da biodiversidade e o uso de solo ligados a suas atividades tivessem preço, a cadeia de valor da empresa pagaria nada menos que 145 milhões de euros, diante de um lucro da companhia estimado em 220 milhões de euros em 2010.
A partir desse cálculo, Jochem Zeitz lançou um movimento chamado Lucros & Perdas Ambientais (Environmental Profit & Losses, ou E P&L), cujo objetivo é desenvolver parâmetros para uma contabilidade do capital natural.
A empresa dá agora um passo a mais para aprofundar esse movimento e acaba de publicar um relatório de 22 especialistas que discutem o alcance e os limites dos métodos aplicados pelas consultorias contratadas pela Puma, com sugestões para torná-los ainda mais transparentes e precisos.
Tão relevante quanto o resultado da contabilidade natural é o fato de a empresa e as consultorias se submeterem a uma avaliação externa e competente a respeito de seus impactos socioambientais.
O mais importante, porém, é o fato de que sua inovação tecnológica passa a ser guiada pelo empenho em reduzir esses custos socioambientais. Em outubro de 2012, a Puma lançou produtos (um tênis e uma camiseta) quantificando claramente a redução de impactos ligados a sua produção e seu uso.
Dizer que ela só faz isso por visar o lucro não passa de uma tautologia: agregar valor é a essência daquilo que define qualquer empresa. O fundamental é saber o conteúdo dessa agregação, a quem se destina e quais são seus métodos e seus beneficiários.
Longe de tomar indicadores financeiros como sinais indiretos de satisfação de demandas sociais, o movimento de Lucros & Perdas Ambientais procura avaliar de forma objetiva os efeitos diretos e reais da gestão empresarial sobre a sociedade. E é nesse sentido que se trata de um movimento social. Minoritário, certamente, mas que já começa a atrair uma quantidade significativa de novos empresários.
Uma de suas expressões mais emblemáticas é a Benefit Corporation, organização que contestou o princípio legal que exigia das firmas, pela lei norte-americana, que respondessem única e exclusivamente às demandas dos acionistas, e não a qualquer outro objetivo (socioambiental, por exemplo).
A partir de 2010, a Justiça americana começa a aceitar, em vários Estados, que essa exigência seja flexibilizada e permite a formação de empresas cujo objetivo explícito é fazer dos negócios e dos mercados um meio de promover transformações sociais.
Hoje já existem 664 empresas credenciadas como Benefit Corporations (B Corp), atuando em 23 países e em 60 setores econômicos.
Essas empresas não se contentam em cumprir a lei ou em reduzir os impactos negativos de sua atuação. Seu lema é o que dá o título a este artigo: não se trata apenas de encontrar e explorar uma oportunidade de mercado. O que caracteriza as empresas B Corp é que o modelo de negócio, ou seja, a maneira como o empresário e sua equipe concebem a ideia de sucesso econômico, não faz do ganho financeiro um elemento autônomo com relação ao conjunto da vida social em que a firma está inserida.
Os valores financeiros são certamente indicadores de peso quanto à gestão empresarial: mas eles não podem ser aceitos como independentes dos resultados da atividade sobre as pessoas e os ecossistemas.
A Benefit Corporation é parte de um conjunto maior que os pesquisadores norte-americanos Nardia Haigh e Andrew Hoffman chamam de organizações híbridas.
Sua marca distintiva é que constroem pontes entre universos que as ciências sociais sempre consideraram intransponíveis: o da obtenção de lucro e o das realizações socioambientais construtivas. Por enquanto, ínfima minoria.
Mas, possivelmente, um caminho para que o cinismo triunfante dos números financeiros não seja a única forma de reconhecimento da competência empresarial.
* Ricardo Abramovay é professor titular da FEA e do IRI/USP, pesquisador do CNPq e da Fapesp e autor de Muito Além da Economia Verde (ed. Planeta Sustentável).
Publicado originalmente pelo jornal Folha de S.Paulo, este texto foi cedido pelo autor para fazer parte de uma série de artigos de especialistas promovida pela área de Gestão Sustentável, do Instituto Ethos, cujo objetivo é subsidiar e estimular as boas práticas de gestão.
Veja também:
A promoção da igualdade racial pelas empresas, de Reinaldo Bulgarelli; e
Relacionamento com partes interessadas, de Regi Magalhães.